Olá.
Hoje,
volto, mais uma vez, a falar de quadrinhos. E de quadrinhos brasileiros, visto
que estamos na proximidade de mais um dia 30 de janeiro, Dia do Quadrinho
Nacional. E, para esta ocasião, estou preparando eventos especiais para este
blog pecador.
A HQ
de hoje é um pequeno clássico do quadrinho nacional. Há tempos fora de
catálogo, foi relançada recentemente.
Mas,
antes de falar da HQ, vou falar do autor: Lourenço Mutarelli.
O
CRIADOR
Sim. Lourenço Mutarelli Jr., um dos mais premiados autores de HQ dos anos 90 do século XX. E não sem motivo.
Nascido
em São Paulo, Capital, em abril de 1964, Lourenço Mutarelli Jr. é filho do
delegado de polícia Lourenço Mutarelli (a família Mutarelli tem tradição
policial – o irmão e a avó de Mutarelli Jr. também são policiais). Lourenço Jr.,
entretanto, resolveu seguir a carreira artística, formando-se na Faculdade de
Belas Artes de São Paulo em 1983. No mesmo ano, começou a colaborar para os
Estúdios Maurício de Souza, onde ficou até 1987.
No
final dos anos 80, iniciava a efervescência dos quadrinhos adultos no Brasil –o
sucesso comercial da revista Chiclete com Banana inspirou muitas pequenas
editoras, como a VHD Diffusion, a Vidente ou a Press Editorial a lançar
revistas de histórias cheias de sexo e violência, sem os paliativos exigidos
pelas editoras maiores, como a Abril, a EBAL e a Globo (mesmo obras consagradas
como O Cavaleiro das Trevas de Frank Miller ou Watchmen de Alan Moore e Dave
Gibbons, as HQ mais “fortes” da década, não pareciam tão ousadas assim, perto
de histórias de Watson Portela, Laerte, Mozart Couto ou E. C. Nickel). Lourenço
Mutarelli também iria se filiar ao movimento. Em 1988, ele lança, pela editora
PRO-C (de propriedade do artista underground e escatológico Francisco Marcatti)
seu primeiro fanzine, Over-12, e uma HQ para a célebre revista Animal, da VHD
Diffusion. Em 1989, aparece seu segundo fanzine, Solúvel, também pela PRO-C.
Aí, ele começa a colaborar com diversas publicações adultas, como as revistas
Porrada Special e Pau-Brasil, da editora Vidente. Nessa mesma editora, ele
edita a revista Tralha, que durou apenas dois números, ao lado de Marcatti e do
poeta cego e marginal Glauco Mattoso, que se tornaria um “guru” para Mutarelli.
Em
1990, ele colabora para a revista Mil Perigos.
Mas
foi em 1991 que ele começou a se tornar mais conhecido nacionalmente. No mesmo
ano em que lança a sua primeira graphic novel, Transubstanciação, pela editora
Graphic Dealer, Mutarelli é premiado: recebe o prêmio de Melhor HQ do Biênio na
I Bienal Internacional de Quadrinhos do Rio de Janeiro, o HQ MIX e o Ângelo
Agostini. E já começa a chamar atenção por seus “argumentos limpos” e “desenhos
sujos e pesados”, em histórias envolvendo a sordidez humana – e, por isso, seus
personagens quase sempre morriam no fim.
Em
1993, veio o segundo álbum, Desgraçados (editora Vidente), que faturou outro HQ
MIX.
Em
1994, inspirado na esposa, Lucimar, Mutarelli lança o álbum Eu Te Amo, Lucimar,
pela editora Vortex (outro HQ MIX).
Entre
agosto de 1995 e junho de 1996, época em que seu filho Francisco nasceu,
segundo o próprio Mutarelli, foi o período mais longo, na década, em que ele
não desenhou quadrinhos, descontente que estava com os rumos do mercado. Após
passar por uma “momentânea crise financeira... há 37 anos”, segundo ele falou
para a esposa, Mutarelli começa a trabalhar para a editora Devir, fazendo
ilustrações para livros de RPG.
Em
1997, publicou A Confluência da Forquilha (editora Lilás), sua história mais
estranha (segundo palavras do próprio), vencedora dos prêmios Nova e HQ MIX.
Esta seria a última HQ produzida por Mutarelli, mas ele voltou atrás.
Em 1998,
pela Devir, que ele lançou sua primeira coletânea de histórias curtas, Sequelas
(mais um HQ MIX na estante). Ele também lançou, pela Edições Tonto de Porto
Alegre, a mini-HQ Réquiem (coleção Mini Tonto).
Foi
em 1999 que ele iniciou aquela que muitos consideram sua obra-prima, a série O
Enigma do Enigmo, também conhecida como A Trilogia do Acidente, estrelada por
seu primeiro personagem fixo, o detetive Diomedes – o primeiro personagem que
Mutarelli não quis matar no final. O primeiro álbum da “trilogia de quatro
álbuns”, O Dobro de Cinco, saiu em 1999, pela Devir (dois HQ MIX – Melhor
Desenhista e Melhor Álbum – e um Ângelo Agostini). Em princípio, nem era pra
ser uma trilogia, mas a elaboração acabou levando Mutarelli a continuar as
aventuras de Diomedes em O Rei do Ponto (2000). E, influenciado por uma viagem
que fez a Portugal, na ocasião em que O Dobro de Cinco foi lançado nesse país,
ambientou os dois outros álbuns da trilogia nesse país: A Soma de Tudo – Parte
1 (2001) e Parte 2 (2002). Todos pela Devir. E que garantiu ao autor mais um HQ
MIX de Melhor Roteirista. Foi em 2001 que Mutarelli acabou perdendo o pai, seu
maior apoiador nesse projeto.
Mutarelli
também colaborou com a coletânea Front, da editora Via Lettera, e com o álbum
coletivo Brazilian Heavy Metal. O álbum seguinte de Mutarelli é a coletânea
Mundo Pet (Devir, 2004), de histórias coloridas (outro HQ MIX). E, em 2005, a
autobiográfica A Caixa de Areia, também pela Devir (outro HQ MIX). Sua última
graphic novel é Quando Meu Pai se Encontrou com o ET Fazia um Dia Quente
(Companhia das Letras, 2011).
E em
2012, Mutarelli recebeu o prêmio Ângelo Agostini de Mestre do Quadrinho
Nacional.
Em
2002, Mutarelli começara a mudar o foco de sua arte: começou a escrever
romances. Nesse mesmo ano, ele lançou o primeiro, O Cheiro do Ralo, pela
Companhia das Letras, que publica seus romances seguintes. Em 2004, ele lança
dois: Jesus Kid e O Natimorto.
Em
2007, pela Devir, é lançado O Teatro das Sombras, coletânea de suas peças de
teatro (sim, ele escreveu peças de teatro também).
Em
2008, mais um romance: A Arte de Produzir Efeito Sem Causa.
Em
2009, vem o romance Miguel e os Demônios, além da reedição de O Natimorto, por
conta da adaptação cinematográfica (ver adiante).
Em
2010, outro romance, Nada de Faltará.
Em
2011, a Companhia das Letras reedita O Cheiro do Ralo. E, em 2012, a Trilogia
do Acidente é reeditada, pela mesma editora, em álbum único. E ainda recebe o
HQ MIX de Melhor Publicação de Clássico em 2013.
Mutarelli,
além de seus trabalhos para HQ e literatura, também tem passagens pelo cinema.
A sua primeira incursão, indireta, foi em 2004, quando seus desenhos foram
inseridos no filme Nina, de Heitor Dhalia, uma adaptação de Crime e Castigo, de
Dostoiévski. Em 2007, o mesmo Dhalia adaptaria O Cheiro do Ralo, com o autor
Selton Mello como o personagem principal, um sórdido vendedor de
quinquilharias. O filme se torna cult, apesar do baixo orçamento. E Mutarelli
ainda faz uma ponta nesse filme!
Em
2009, o diretor Paulo Machline adapta O Natimorto para o cinema. Detalhe: o
próprio Mutarelli participa como ator principal. E não fica só nisso: em 2013,
Mutarelli atua no curta-metragem Mesa para Dois, de Amilcar Oliveira, que
adapta uma das HQ da série 10 Pãezinhos, dos gêmeos e superpremiados Fábio Moon
e Gabriel Bá. Os dois, inclusive, haviam dedicado o álbum (lançado em 2006) ao
próprio Mutarelli.
O
ACIDENTE
Pois
o álbum de Mutarelli que escolhi para comentar foi justamente DIOMEDES – A
TRILOGIA DO ACIDENTE, a reedição da obra-prima de Mutarelli pela Companhia das
Letras.
Bão.
Como eu disse, a TRILOGIA DO ACIDENTE foi iniciada em 1999, com o primeiro
álbum publicado, O Dobro de Cinco. Mutarelli iniciou a produção do álbum em
1997, meio que por hobby, enquanto o desenhista trabalhava nas ilustrações de
RPG. Em princípio, nem era para ser uma trilogia, e o detetive Diomedes só iria
aparecer no início e no fim do álbum. Porém, um fator pesou na criação do
personagem: Mutarelli criou o detetive inspirado no pai. Desse modo, Diomedes
seria um alter ego de Lourenço Mutarelli, o velho, nas idiossincrasias e também
nas piadas. Mutarelli pai inclusive sugeria piadas para o personagem, além de
conferir as páginas desenhadas.
Foi
por isso que Diomedes foi o primeiro personagem que Mutarelli Jr. não conseguiu
matar no final do primeiro álbum. Ele pretendia apenas dar continuação ao
primeiro álbum quando produziu O Rei do Ponto, em 2000, mas aí, na elaboração
da história, apontou-se a possibilidade de uma trilogia. Mas a trilogia acabou
se estendendo além do necessário – Mutarelli resolveu dividir o terceiro
capítulo, A Soma de Tudo, em duas partes, publicadas respectivamente em 2001 e
2002. Dois fatos influenciaram essa divisão: O primeiro foi a viagem que
Mutarelli fez para Portugal, em 2001, para lançar O Dobro de Cinco no Festival
de Banda Desenhada de Amadora, perto de Lisboa – logo, Diomedes vive sua
aventura em Lisboa.
O segundo
fato foi o falecimento do pai, em 6 de junho de 2001. Lourenço Mutarelli, o
velho, só pode ver a nova aventura de Diomedes até o capítulo 5 de A Soma de
Tudo – Parte 1 – a cena de transição para o capítulo 6, um detalhe do Mosteiro
dos Gerônimos, de Lisboa, foi desenhado, segundo Mutarelli, como uma forma de
oração.
Bem,
foi desse modo que a trilogia chamada O Enigma do Enigmo passou a ser conhecida
como DIOMEDES – A TRILOGIA DO ACIDENTE. E Diomedes ganhou projeção nacional.
Foi noticiado, inclusive, que O Dobro de Cinco ganharia uma adaptação para
cinema, com estreia em 2009 – mas agora não sei informar se o filme foi
realmente concluído.
Mas,
como todos os outros álbuns de Mutarelli, fora os mais recentes, como Mundo Pet
e Quando Meu Pai se Encontrou com o ET..., há tempos os álbuns da Devir d’A
TRILOGIA DO ACIDENTE estão fora de catálogo nas livrarias – não são fáceis de
achar nem em sebos. Só recentemente, o autor autorizou que Desgraçados fosse
disponibilizado para download na internet (falando nisso).
Bem,
a falta foi suprida em 2012. A Companhia das Letras lançou, em álbum único, DIOMEDES
– A TRILOGIA DO ACIDENTE, todos os quatro álbuns mais extras, num álbum de 432
páginas, revisado e com novo letramento, feito por Lilian Matsunaga, que imita,
ao máximo, o letramento original de Mutarelli.
Mas o
álbum conserva a principal característica da obra original: o desenho detalhado,
sujo e pesado, apoiado em um ótimo argumento e um roteiro bem conduzido, cheio
de um humor agridoce, mas que pode decepcionar aqueles que gostam de ação,
movimento, que esperam mais aventura e suspense. Em certos momentos, a história
é praticamente paralisada por conta dos longos diálogos entre os personagens.
Quanto à arte, ela também passa por uma evolução: no primeiro álbum, os
personagens parecem repugnantes, desenhados com mão pesada, com erros
(propositais) de proporções anatômicas, carregando no preto. Nem as mulheres
que aparecem na história ficam bonitas no traço carregado de sordidez de Mutarelli
– todos os personagens apresentam rugas, espinhas, sardas, pequenas
cicatrizes... São, em suma, mais próximos das pessoas comuns, dos tipos urbanos
afetados pela poluição, pela solidão no meio de uma multidão e pela sordidez
dos edifícios e do lixo espalhado nas ruas. Na altura do quarto álbum,
Mutarelli alcança uma arte mais tridimensional, os personagens tem proporções anatômicas
mais equilibradas, mas ainda cheios de rugas, veias saltando, feridinhas...Mutarelli,
ainda por cima, dá sugestões para a trilha sonora de algumas cenas, como
“Paradise Nevada” de John Cale e Bob Neuwirth, numa cena de perseguição em O
Dobro de Cinco; “Defeito 14: Xiquexique”, de Tom Zé e José Miguel Wisnik, em
outra cena de perseguição, em O Rei do Ponto; e “Channels and Winds”, de Philip
Glass e Ravi Shankar, numa das cenas de Diomedes em Lisboa em A Soma de Tudo –
Parte 1. E, num “ranço” por conta da situação econômica e social do então
governo FHC, Mutarelli chama o Brasil de “Braxil” (e brasileiros de
“braxileños), e São Paulo, de “San Pablo”. E a história ainda inclui momentos
de violência explícita, palavrões e nada excitantes cenas de sexo. Leitura não
recomendada para menores.
Ao
fim do álbum, um arquivo inédito, reunindo tiras, esboços e ilustrações
incompletas – incluindo tentativas de se fazer uma série de tiras de Diomedes e
uma história curta, que Mutarelli nem se deu ao trabalho de terminar – em
muitos momentos, dá pra ver o lápis, os textos mais ou menos definidos... Meio
que a história se transforma gradativamente em esboços.
O
álbum, entretanto, perdeu um extra de A Soma de Tudo – Parte 2 que, com
certeza, seria precioso: um caderno em que diversos artistas brasileiros
interpretam, a seu modo, o detetive Diomedes: Marcelo Gau (hoje, Marcello
Quintanilha), Marcelo Campos, Newton Foot, Fábio Zimbres, Samuel Casal, Luke
Ross e Fernando Gonsales homenagearam Diomedes.
Mesmo
assim, como dito, ganhou em 2013 o Prêmio HQ MIX de Melhor Publicação de
Clássico.
A
CRIATURA
Bom.
Como eu disse, Mutarelli criou Diomedes inspirado no pai.
Diomedes
é um detetive particular, mas passa longe do glamour típico da categoria ficcional.
Não é um sujeito elegante, bom de briga, brilhante em deduções, sempre cercado
de belas mulheres e grandes intrigas: apesar do chapéu e do terno, está mais
para um cara comum, um sujeito qualquer que luta para sobreviver nesse mundo
que quer mais é devorar os justos – a eles, segundo a Bíblia, resta o paraíso.
Delegado
de polícia aposentado, e cuja renda provém (mal e mal) da aposentadoria, que
ele tenta complementar com as atividades de detetive particular, Diomedes é
gordo, quase obeso, usa um bigodinho fora de moda, beberrão, fuma feito uma
chaminé, cínico, cujo maior talento parece ser contar piadinhas inadequadas
para a ocasião ou causar péssimas primeiras impressões. Quer dizer: Diomedes, a
princípio, não inspira simpatia com sua aparência repugnante e seu linguajar
chulo. Mas basta cinco minutos de conversa para desarmar o interlocutor e as
impressões sobre o gordão ficarem melhores. E as piadas que o gordo conta no
decorrer do álbum fazem sentido dentro do contexto, embora sejam anedotas que a
maioria já conhece.
Diomedes
é definido como um sobrevivente: cínico, não espera nada do mundo nem das
pessoas; obstinado, decide levar adiante o caso que aceitou, mesmo sendo inútil
continuar; sábio, já sabe observar a ironia do mundo.
Diomedes
atende em um escritório que segue o estereótipo dos escritórios de detetives:
mal iluminado (clima noir é imprescindível), com janelas com persianas, mesa,
arquivo, vidro na porta – mas não tem o ventilador no teto.Ele não bebe de
garrafinhas de bolso, ele emborca mesmo garrafas grandes de cachaça, que ficam
espalhadas pelo escritório. E se sente nu sem o seu revólver no coldre, mesmo
que não precise usá-lo.
No
início da trama, Diomedes é casado com Judite, mulher a quem o tempo já roubou
a beleza. Diomedes ama a esposa, mas não é correspondido: Judite o trai quando
ele não está em casa a serviço. Diomedes tem dois grandes sonhos: dar à esposa
um sofá de três lugares e fazer uma viagem para Buenos Aires, Argentina, e
colocar um cigarro na estátua do músico Carlos Gardel.
E
ele tem a grande chance de realizar esse sonho quando um cliente chega a seu
escritório, pedindo para encontrar uma pessoa desaparecida há tempos. Uma
aventura que fará Diomedes cruzar com tipos tão bizarros quanto ele.
A
TRILOGIA
O
DOBRO DE CINCO, cujos capítulos são focados nos personagens que aparecem em
fotos nas páginas de entrada, começa quando um homem que se identifica como Hermes
(ele seria originalmente o personagem principal da trama) entra no escritório
de Diomedes. A princípio, o detetive faz deduções sobre a vida do homem, mas
este, irritado porque o detetive fica o chamando de “garoto”, devolve uma
dedução acerca da vida do gordo. Depois de uma breve discussão cheia de farpas,
os dois entram em acordo (a cena mais antológica de todo o primeiro álbum).
E é
num diálogo entre Diomedes e Judite, em casa, que o caso é exposto ao leitor:
Diomedes foi encarregado de encontrar Enigmo, um famoso mágico de grande
habilidade que está sumido há tempos. Há alguns anos, Enigmo teria feito uma
apresentação particular para o pequeno Hermes, no dia de seu aniversário –
Hermes seria o herdeiro de um rico empresário do café; e agora, Hermes quer uma
apresentação do mágico no aniversário de seu filho.
As
primeiras pistas fornecidas a Diomedes para encontrar o mágico estão em um
circo mambembe e falido em uma cidadezinha do interior, para onde Diomedes se
dirige (enquanto isso, Judite chama um eletricista em casa, só para transar com
ele no meio da sala). Lá, ele entrevista os artistas: um palhaço, Chupetin, casado
com uma ex-engolidora de espadas que hoje é mulher barbada, que, mesmo sem
fazer graça e filosofando seriamente sobre as misérias da profissão, faz
Diomedes se contorcer de rir; um trapezista que não sabe fazer outra coisa na
vida senão se balançar no trapézio; um domador de leões enlouquecido, Lorenzo;
e um travesti cartomante, Melissa. Esses dois últimos constituem capítulos
importantes. Lorenzo, um domador de leões maneta e viciado em dardos
tranquilizantes, atirados pelo assistente Montanha, praticamente enlouquecido
como um profeta do apocalipse, faz algumas revelações sobre Enigmo, que seria
capaz de operar milagres e se dizia Jesus Cristo. Durante a entrevista,
Diomedes, que perde a cabeça diante do domador, acaba atacado pelo decrépito
leão Freeway, animal de estimação de Lorenzo. Ferido, Diomedes vai se consultar
com Melissa, que, de travesti, diante dos olhos do detetive, se transforma em
uma mulher de verdade, enquanto vê nas cartas do tarô um futuro nada promissor
ao caso em que o gordo está envolvido. É nesse capítulo que é explicado o
sentido do título do primeiro álbum, referente ao arcano 10 do tarô, a Roda da
Fortuna, significandoqueda e também renovação. Mas Diomedes, enlouquecido,
espanca Melissa e arranca a informação que queria – e, antes de ir embora do
circo, arma a morte de Lorenzo, simplesmente trocando um dos dardos
tranquilizantes de sua espingarda por uma bala de verdade. Ou seja, a visita ao
circo mexe com a cabeça do detetive – e os efeitos serão sentidos nos próximos
álbuns da trilogia, onde Enigmo é citado uma porção de vezes.
No
interlúdio, somos apresentados aos pistoleiros de aluguel Zoião e Gambero, que
tem importância no desfecho da trama.
Depois
de alguns lances, incluindo uma visita ao escritório de Diomedes de uma mulher
que quer descobrir quem é a amante do marido – ela é a esposa do eletricista
com quem Judite trai Diomedes – o detetive e Hermes vão à procura de Enigmo,
que estaria refugiado em um sítio distante da capital. Mas, no correr da viagem,
Hermes acaba revelando que não é como se apresentou ao detetive; que o dinheiro
que usará para pagar o detetive nem é dele; e o álbum tem um desfecho trágico,
quando os dois pistoleiros saem em perseguição de Hermes e o matam. O DOBRO DE
CINCO tem o final em aberto para Diomedes, que, gravemente ferido, espera seu
fim enquanto fuma um cigarro.
Muitos
leitores devem ter estranhado que o álbum tenha terminado assim, no clímax. Mas
teriam de esperar até o ano seguinte, quando O REI DO PONTO foi publicado, para
saber o que aconteceu a Diomedes, como foi que ele escapou da morte.
No
início de O REI DO PONTO, Diomedes se encontra na pior: deprimido, dependente
de bengala para andar, morando no escritório, pois fora abandonado pela esposa,
que o trocou por outro e ainda o humilhou (sua maior dor). E é nessa situação
que Diomedes é encontrado pelo policial Germano, que bate à porta de seu
escritório. Germano, que no correr do álbum acaba se revelando um policial
irônico, violento, corrupto e cruel, é da cidadezinha onde se localizava o
Grande Circo, e possui as provas que ligam Diomedes à morte do domador Lorenzo
(e pensa em usar tais provas para chantagear o gordo). Desse modo, ele exige
que Diomedes seja seu parceiro extraoficial no caso em que está trabalhando no
momento. É durante o diálogo entre Diomedes e Germano – que inclui até uma
garrafada na cabeça – que o gordo conta, em flashback, como escapou dos assassinos
Zoião e Gambero. Aliás, Diomedes conta que Gambero, enlouquecido, acaba matando
a tiros o parceiro Zoião, que, inacreditavelmente, morre em pé.
Depois
que conseguem se entender, Germano e Diomedes firmam parceria. E, na reunião
seguinte, no escritório do gordo, Germano leva junto o parceiro oficial,
Waldir, um negro culto, um tanto nervoso, mas que tem um problema: ao invés de
pronunciar “cozinha”, pronuncia “cunzinha” (muito pelo fato de sua mãe ser
semianalfabeta), tornando-se assim alvo das piadas de Diomedes. Germano e
Waldir expõem o caso: eles querem que Diomedes auxilie a pegar um serial killer
que envenena casais com veneno de rato após sessões de ménage a trois (relações
sexuais a três). Como, durante a perícia, é constatada a presença de veneno nos
três copos de bebida encontrados nas cenas dos crimes, os policiais deduzem que
o assassino pratique mitridatismo (consumo de veneno em pequenas e progressivas
doses, para que o corpo se imunize). A prática teria sido criada pelo rei grego
Mitrídates VI, governante da região do Ponto, no século II a.C. (daí o nome do
álbum). E um plano é traçado para pegar o assassino – mas, para esse plano, o
próprio Diomedes terá de se mitridatizar, consumindo pequenas doses de veneno
de rato nas refeições – por isso, Germano passa a fazer as refeições com ele. E
Diomedes só concorda em participar depois que Germano o espanca. (o diálogo
entre Diomedes, Waldir e Germano acaba se tornando outro momento antológico do
álbum).
Para
entrar no clima das investigações, Diomedes vai ter uma conversa com o poeta
Glauco Mattoso, um especialista em mitridatismo (não foi por acaso que
Mutarelli resolveu homenagear o seu guru em O REI DO PONTO, lhe dando uma
participação especial no álbum como ele mesmo. Aliás, Mutarelli cita ao longo
do álbum alguns dos sonetos – poemas com duas estrofes de quatro versos e duas
com três versos – de Mattoso, que recentemente bateu o recorde de elaboração
desse tipo de poema, compondo cerca de 1000 sonetos).
Em
certo momento, Waldir, o único personagem que parece realmente interessado no
bem-estar de Diomedes, chama o gordo para uma conversa particular em um beco. O
negro, que está agindo sob chantagem de Germano, revela que o policial
pretende, na verdade, moldar Diomedes ao perfil do assassino procurado, e jogar
nele a culpa pelos assassinatos dos casais. Isso deixa Diomedes, meio que com a
personalidade afetada pelo veneno, decidido a pegar o assassino.
Mas
o plano para pegar o assassino sai meio que por água abaixo: em um motel
barato, Diomedes se passaria por um “corno manso”, enquanto uma prostituta
faria o papel de esposa; e o assassino, convocado para a ménage mediante um
anúncio em uma revista de sexo bizarro, seria pego em flagrante por Germano e
Waldir, que escutam tudo em outro quarto – e, com Diomedes mitridatizado, ele
em tese não morreria envenenado. Mas Diomedes resolve não abrir a porta do
quarto para o “parceiro” e transa com a prostituta, enquanto Germano, nervoso,
espanca Waldir. Mas o negro consegue salvar sua própria pele e a de Diomedes,
com uma notícia de jornal que, na verdade, é mais um desvio de foco. Desse
modo, a principal lambança de Mutarelli nesse segmento seja ter eliminado
rapidamente o argumento do mitridatismo, que sustentaria o título. O fato de
Diomedes ter se mitridatizado, ao fim, não serviu pra nada.
E,
na cena seguinte, o detetive e os policiais vão até uma oficina, em busca do
novo suspeito dos crimes. E a cena seguinte é emocionante, com a perseguição ao
rapaz, tiroteios, Diomedes perseguindo o suspeito com uma escavadeira, e
Germano, drogado, cantando “A Velha a Fiar”, uma velha cançoneta.
Germano,
com certeza, é o personagem mais detestável da série, mas o pior: ele se dá bem
no fim da história, enquanto que a Diomedes só lhe resta voltar a sua depressão
inicial.
Mas
ele já parece melhor no início de A SOMA DE TUDO – PARTE 1. A bem da verdade, o
álbum começa em Lisboa, Portugal, quando uma sociedade secreta executa um homem
que se recusou a se recusar a revelar o maior segredo da capital portuguesa –
e, com isso, é atirado aos tubarões do Oceanário de Lisboa. Só depois, vemos
Diomedes no escritório, recebendo a visita de Waldir, que inclusive o
presenteia com um peixinho dourado. Durante a conversa, Diomedes conta a Waldir
algo que havia ficado em aberto nos álbuns anteriores: como ele encontrou
Enigmo, que já estava decrépito e cujas habilidades não correspondiam mais à
idade. Algo que ele não contara para Germano.
É aí
que entra na história o advogado picareta Dr. Gouveia, um velho amigo de
Diomedes, que propõe ao detetive um caso internacional: investigar o
desaparecimento de um homem em Lisboa, em troca de um generoso pagamento: cinco
mil dólares. Para impressionar a mulher do desaparecido, a irritada Suelen, que
vem ao escritório do gordo, Gouveia bagunça o escritório, com a desculpa de
estarem procurando um microfilme, e falam frases em inglêse jargão de advogado.
As únicas pistas do caso são dois presentes que o desaparecido, Pierino,
mandara à mulher: um barquinho em miniatura e uma foto de uma estranha mulher,
junto a um punhado de frases enigmáticas.
Antes
de ir para Lisboa, Diomedes resolve visitar a ex-mulher. Judite não parece
contente em receber o detetive, mas, mesmo assim, o gordo presenteia-a com parte
do pagamento, para que ela enfim compre o sonhado sofá de três lugares.
Já
em Lisboa, Diomedes se encontra com o fotógrafo João. E, numa conversa com ele
numa confeitaria lisboeta, Diomedes vê a sombra de Enigmo persegui-lo mais uma
vez: João fala que o mágico, além de ter falecido há alguns anos em Lisboa, foi
uma figura importante na capital portuguesa – o que contraria o que Diomedes
descobriu acerca do mágico. No instante seguinte, os dois são atacados por
bandidos, que espancam Diomedes e pegam a foto. Nesse ponto, Diomedes se
encontra perdido – João fugira com a bagagem de Diomedes durante a confusão, o
detetive não consegue hospedagem e chega a telefonar a cobrar para Waldir,
pedindo ajuda – pois, se não conseguir resolver o caso, ele terá de devolver os
cinco mil dólares a Suelen. O clímax do álbum se dá quando Diomedes,
investigando os lugares onde Pierino supostamente esteve da última vez, acaba
encontrando a tal mulher da foto, que parece aparecer por toda a parte, nas
ruas lisboetas. E, na correria, que mexe com a mente do embriagado Diomedes,
ele volta a encontrar João, que promete ajudar o detetive a resolver o caso –
com a condição que a solução não seja revelada a mais ninguém.
Mas
o “detetive intercontinental”, como Diomedes passa a se denominar, revela a
solução do caso para Waldir, em A SOMA DE TUDO – PARTE 2. O álbum começa quando
Diomedes retorna ao escritório no Brasil, ops, “Braxil”. E só depois é que ele
resolve chamar Waldir para conversar – não sem antes tirar sarro do negro “cunzinha”
ao telefone.
Waldir
propõe ajudar Diomedes a limpar o escritório, ainda bagunçado por causa da
história do “microfilme” de Gouveia. E, num longo diálogo pontuado por
interrupções e divagações filosóficas entre Diomedes e Waldir, o gordo conta
como conseguiu resolver seu primeiro caso: como descobriu que Pierino morreu
(ele era o homem que foi jogado aos tubarões na primeira parte), e como
descobriu o segredo de Lisboa, a causa da morte do procurado. Porém, como
Diomedes não pode revelar a Suelen que o marido morreu, ele traz na bagagem uma
foto forjada, que dá a entender que o finado trocara-a por outro – uma
fotomontagem preparada por João. Desse modo, Diomedes não teria de devolver os
cinco mil dólares. Para descobrir essa verdade, Diomedes, ainda em Lisboa,
procura um dos amigos do finado, Paulo dos Fazeres, um editor de HQ. O encontro
dos dois se dá no Festival de BD de Amadora, onde os dois estão cercados de
diversos personagens célebres das HQ que circulam entre os estandes: Asterix,
Peanuts, Ferdinando, Ranxerox, Robert Crumb... Mas, para se aproximar de Paulo,
ao identificar por perto os mesmos bandidos que o espancaram na confeitaria,
Diomedes se disfarça de Pikachu (Pokemon, naquele ano, ainda estava na crista
da onda). Tudo nma homenagem de Mutarelli ao mundo das HQ (no fim do álbum,
Mutarelli identifica os autores de cada um dos personagens retratados nesse
capítulo). Aliás: Paulo dos Fazeres, que pontua sua conversa com divagações
filosóficas sem sentido, na verdade, é um “avatar” do então editor de
Mutarelli, Mauro Martinez dos Prazeres, da Devir (chamada no álbum de “Porvir”).
E o próprio Mutarelli também tem um “avatar” na história: o autor de quadrinhos
Zigmundo Muzzarella, que se torna um aliado inesperado de Diomedes. Ele não
apenas serve de guia para Diomedes através de Lisboa, mas conheceu Pierino –
ele havia pedido que Muzzarella quadrinizasse suas descobertas sobre o segredo
de Lisboa. Que segredo é esse? E o que a estranha mulher tem a ver com isso? E
o que Enigmo, ainda por cima, tem a ver com tudo isso? Só lendo para entender,
pessoal.
Ah:
e antes que perguntem, não, Diomedes não confronta a tal sociedade secreta. O
diálogo entre Diomedes e Waldir tenta encerrar a inquietante questão: afinal,
existe ou não magia? Como ela, se existir, pode afetar as pessoas?
E,
ao fim, acabamos gostando de Diomedes – ele não parece apenas o pai de
Mutarelli: no fim, ele também acaba lembrando o nosso pai.
A
edição, no fim, não pode faltar na estante dos apreciadores de HQ brasileira. É
uma bela oportunidade de conhecer um clássico sem a necessidade de garimpar nos
sebos ou pagar preços exorbitantes por exemplares encontrados.
O
álbum custa R$ 60,00, em média. Procure nas suas melhores gibiterias.
E
agora, para encerrar, a ilustração de hoje, by Rafael! Hoje, resolvi fazer uma
releitura de uma ilustração do próprio Mutarelli, que vocês viram acima: “O
Homem que Comeu Suas Próprias Mãos...” foi publicada na revista Porrada!
Special no. 6, cerca de 1990. Fiz o melhor que pude – e, como poucas vezes
nessa vida, até eu me surpreendi com o resultado. Mas não acompanhei a
ilustração com um poema. Não é sempre que costumo publicar imagens assim, sórdidas. Até eu fico assustado.
Sei
lá, me encontro meio desencantado com tudo ultimamente... uns fatos
desagradáveis ocorridos por esses dias me fazem questionar essas atividades
cotidianas... quem sabe, não seja o caso de eu também comer minhas próprias
mãos? Não, o que estou pensando?! Descubro que preciso destas mãos mais que
nunca!
De
todo modo, aguardem novidades ainda para esta semana.
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