Olá.
Na
última postagem, vocês leram a respeito do romance Sonhos Tropicais, de Moacyr Scliar, uma verdadeira recriação do
ambiente social, político e científico do início do século XX.
Pois
hoje, vamos falar do produto derivado desse livro: SONHOS TROPICAIS, o filme
que praticamente ninguém viu – quando foi lançado. O que é uma pena.
Bem.
SONHOS TROPICAIS, o filme, foi produzido em 2001, com direção e produção de
André Sturm, que também co-escreveu o roteiro com Fernando Bonassi e Victor
Navas, tendo por base o romance de Moacyr Scliar – mas apenas tendo por base,
porque o filme não é uma adaptação direta do livro.
Com
uma excelente recriação da época tratada, tanto nos figurinos como nos
cenários, SONHOS TROPICAIS trata da atuação do sanitarista Oswaldo Cruz em
favor da saúde pública do Rio de Janeiro e dos eventos, diretos e paralelos,
que conduziram à Revolta da Vacina de 1904.
Bão:
para começar, é preciso fazer a comparação entre livro e filme. O livro adota
um recorte de tempo maior: ele relata toda a vida do sanitarista Oswaldo Cruz,
do nascimento à morte, e acontecimentos paralelos, tanto no Brasil como na
França; e essa história é narrada por um médico alcoólatra e desempregado do
Rio de Janeiro dos dias atuais, que está à espera de um encontro com um
pesquisador norte-americano que deseja fazer uma pesquisa sobre a vida de
Oswaldo Cruz. Só isso já caracteriza o livro como sendo muito mais rico em
informações.
O
filme, por sua vez, adota um tempo cronológico menor: o período entre 1898 e
1904. Dispensa a trama paralela do médico narrador nos dias atuais; dispensa o
período da juventude de Oswaldo Cruz e o período passado na França, trabalhando
no Instituto Pasteur. A trama se passa inteiramente no Rio de Janeiro, do
retorno de Oswaldo Cruz ao Brasil até o desfecho da Revolta da Vacina –
ignorando também os eventos posteriores. Sturm manteve, mesmo, a narrativa
fragmentada em histórias paralelas; mas, antes de Oswaldo Cruz (interpretado
por Bruno Giordano), a protagonista do filme é Esther (Carolina Kasting), a
prostituta polonesa, cuja importância na trama do livro é menor. E, entre
Esther e Oswaldo Cruz, o deuteragonista (segundo papel mais importante) do
filme é o malandro Amaral (Douglas Simon).
Bão.
O filme trata de diversos ambientes: o médico, nas cenas passadas no interior
dos hospitais e dos laboratórios; o político, tanto nos gabinetes do presidente
da época, Rodrigues Alves (Cecil Thiré) como do prefeito do Rio de Janeiro,
Pereira Passos (Nelson Dantas), outro ambiente pelo qual Rodrigues Alves
circula; o social das classes mais abonadas, representado pelos três senhores
que comentam os fatos sentados à mesa de uma confeitaria (José Lewgoy, Hugo
Carvana e Antônio Pedro); o das favelas, por onde circulam os tipos populares,
entre eles o feroz negro Prata Preta (Bukassa Kabengele); o ambiente das
primeiras manifestações trabalhistas, inflamadas pelos discursos de líderes
como Vicente de Souza (Antônio Grassi); e o ambiente dos bordéis, por onde
tanto Esther como Amaral circulam – o filme também retrata a prática corrente,
à época, do “tráfico de escravas brancas”, das mulheres, principalmente do
leste europeu, que são aliciadas com a promessa de um bom casamento em terras
brasileiras, mas que no fim descobrem que foram ludibriadas, e acabam
trabalhando como prostitutas. Se forem loiras de olhos azuis, são as mais
cobiçadas, principalmente por “figurões”.
Infelizmente,
é nessa armadilha na qual Esther, polonesa e judia, acaba caindo – ela chega no
mesmo navio que Oswaldo Cruz, mas acaba tomando um rumo diferente, e é difícil
ficar insensível ao seu sofrimento, em uma época em que mulher não tinha vez. A
moça vai parar em um bordel do bairro da Lapa, e protesta ao descobrir que fora
enganada. Esther, inicialmente, sofre para se adaptar ao trabalho forçado,
tendo de aguentar as agressões do cafetão Rotchilds (Antônio Petrin), que chega
a estupra-la e açoitá-la. Felizmente, Esther encontra algum amparo junto à
amiga Vânia (Lu Grimaldi), também polonesa. Aliás, Esther, Vânia e Rotchilds
dialogam em língua iídiche.
Com
o tempo, Esther vai se adaptando à “vida fácil” por falta de opção. Aprende a
língua portuguesa. Chega a ser acusada por um cliente de ter passado e este
doenças venéreas, mas encontra quem lhe defenda. Esse “defensor” é Amaral, com
quem desenvolve um relacionamento de idas e vindas – Amaral está apaixonado
pela “polaquinha”, e conta principalmente com a lábia para conseguir “um pouco
de amor” junto a Esther, que assimila o cinismo típico da profissão – “sem
dinheiro, sem amor”.
Mais
tarde, Esther acaba se tornando a favorita do duas-caras Cardoso de Castro
(Flávio Galvão), o delegado de polícia do Rio de Janeiro. No início, o Dr.
Cardoso trata bem a “polaquinha”, e, sob sua proteção, Esther monta seu próprio
bordel. Mas as coisas não parecem assim tão fáceis: em uma cena, Esther se
deita com um político, com a autorização de Cardoso, desejoso da amizade da
importante figura; mas o político não aguenta o esforço e morre do coração.
Porém,
as coisas começam a mudar no momento em que Cardoso descobre o caso entre
Esther e Amaral. O malvado delegado passa a usar as prerrogativas de seu cargo
para se vingar de Esther – prerrogativas facilitadas pelos planos de
reurbanização do Rio de Janeiro implementadas por Pereira Passos, que, com a
carta branca de Rodrigues Alves, entre outras coisas, prevê a demolição dos
casarões antigos do centro da cidade, que estavam sendo usados como cortiços, e
a expulsão dos antigos moradores para a periferia. Claro que, a esse pretexto,
Cardoso expulsa Esther de seu bordel, e a moça, em companhia de Vânia, pena
para procurar outro lugar para morar e exercer seu “ofício” – Cardoso orienta
várias pessoas a não darem trabalho à “polaquinha”. Ela até consegue acolhida
em uma casa, mas é expulsa depois que Vânia contrai varíola e vem a falecer no
hospital. Pouco depois, ela consegue uma função de garçonete e prostituta na
venda de Manoel Romão (Cláudio Mamberti), local por onde Prata Preta e Amaral
também circulam.
Em
alguns momentos, ouvimos a voz de Esther em off, lendo o texto de suas cartas
mandadas para o pai, em seu país – ela precisa mentir, contar uma história
diferente para seus pais na Polônia, não sendo possível contar a verdade.
Bão:
enquanto corre a história de Esther, em paralelo corre a de Oswaldo Cruz,
circulando entre a casa, o laboratório e o gabinete do governo. Quando chega ao
Brasil, junto com a compreensiva e temerosa esposa Emília (Ingra Liberato),
inicialmente ele está trabalhando como médico em uma fábrica de tecidos; mais
tarde, é nomeado Diretor de Saúde Pública por Rodrigues Alves. Ele, em
princípio, teve dificuldade para instalar seu laboratório de pesquisas na
fazenda de Manguinhos, a fim de produzir soro antipestoso para debelar uma
epidemia no porto de Santos. Os bons resultados em Santos garantem a Oswaldo
Cruz a carta branca de Rodrigues Alves e Pereira Passos, necessária para
implementar sua política sanitária, prevista nos planos para melhorar a imagem
do Rio de Janeiro, a vitrine brasileira para os estrangeiros – os planos
visavam à atração de investimentos estrangeiros para minorar a queda nos
rendimentos do café (na época, os “donos do poder” eram os grandes plantadores
de café).
Bem.
Os planos de Oswaldo Cruz previam: o combate aos mosquitos, a fim de livrar a
cidade da febre amarela – o que ele consegue, com sucesso, apesar das
tentativas de opositores em provar o contrário da eficácia desse plano; o
combate da peste bubônica, através da caçada aos ratos; e, claro, a
obrigatoriedade da vacinação contra a varíola.
O
plano da peste bubônica tem adesão da população, já que uma das medidas foi a
caça e a troca de ratos vivos por dinheiro junto a agentes da saúde pública. E
é disso que Amaral acaba se aproveitando: consegue aliciar um líder positivista,
obcecado pelo retrato da musa positivista Clotilde Veau, para obter um terreno,
onde Amaral instala um criadouro de ratos, e faz alguma fortuna vendendo os
bichinhos. Porém, as autoridades acabam desconfiando sobre tantos ratos
vendidos por uma única pessoa, e Amaral acaba preso – outra oportunidade de
vingança por parte de Cardoso.
Oswaldo
Cruz acaba recebendo oposições de diversos setores – mas sabe como contornar as
acusações infundadas de que é vítima. Em uma cena, ele é acusado pela suspeita
de uma vacina ter causado a morte de uma mulher; porém, o próprio Oswaldo vai
pessoalmente fazer a autópsia na mulher morta – que sequer havia sido feita,
pois o legista nem abrira o cadáver – e desmente o boato, provando que a mulher
morrera de bêbada.
Mas
foi a obrigatoriedade da vacina que acabou complicando tudo para o lado de
Oswaldo Cruz: a oposição foi enorme, tanto do lado dos adversários do governo
de Rodrigues Alves quanto do povo. O que antes era simplesmente guiado pela
desconfiança por conta da substância a ser aplicada – germes atenuados de
varíola bovina, que, segundo alguns, poderiam transformar a pessoa vacinada em
bezerro – e pela moral algo tacanha da época – supostamente as moças de família
teriam de tirar a roupa para aplicar a vacina – acaba se tornando questão política.
Por parte de militares, positivistas e políticos descontentes, uma oportunidade
para tirar do governo as oligarquias cafeeiras; por parte do povo, uma
oportunidade de obter melhores condições de vida através de protestos. Nenhum
dos lados leva em conta a intenção do Dr. Oswaldo de melhorar a saúde da
população, logo, nenhum dos lados deixa claros os motivos reais da oposição à
vacina, o que deixa Oswaldo Cruz impotente e se sentindo derrotado, apesar da
consolação de Emília. Nem o governo parece estar a seu lado – praticamente
deixando claro que o governo só priorizava seus interesses no poder.
Enquanto
isso, as ruas são tomadas por confrontos entre a polícia e os setores
populares, com barricadas montadas com entulho, tiros, mortos e feridos. O
“exército” popular tem Prata Preta à frente. Esther fica como uma observadora
solitária da situação, e Amaral até se envolve brevemente, como negociador do
conflito, a mando do delegado Cardoso. E, como todos que estudam História
sabem, as consequências não foram as melhores.
Well:
o filme procurou, conforme a frase nos créditos finais, retratar a realidade
histórica com realidade – até mesmo os acontecimentos fictícios. O que aparece
no filme praticamente bate com a realidade histórica, tanto no ambiente dos
gabinetes como do povo, deixando claro os tratamentos dispensados tanto para um
como para outro na época. E, claro, na época da República Velha, o povo levava
a pior: inchando os cortiços e as favelas, vivendo em ambientes insalubres onde
campeavam as doenças graves, se submetendo à exploração nas nascentes
indústrias ou nas lavouras, passando fome quando não conseguiam trabalho, e
ainda submetidos à constante violência policial, numa época em que a capoeira
era proibida.
O
filme, último do ator Cláudio Mamberti, que faleceu em 2001, foi filmado em
locações nas cidades paranaenses de Castro e Antonina, onde são recriadas as
tomadas nas ruas e nas casas; as únicas cenas rodadas no Rio de Janeiro, mesmo,
são as que ocorrem no Palácio do Catete (antiga sede do governo federal) e na
Confeitaria Colombo (onde se reúnem os personagens de Lewgoy, Carvana e Pedro).
E ainda foi premiado: recebeu o prêmio de melhor atriz (para Carolina Kasting)
no Festival de Cinema de Recife em 2002; e foi indicado a melhor figurino no
Cinema Brazil Grand Prize.
Outra
curiosidade diz respeito às cenas da Fazenda de Ratos do Amaral: foram usados
460 ratos de laboratório, brancos, que tiveram de ser tingidos de cinza.
O
filme tem uma excelente cenografia, bem-cuidado som e trilha sonora (com versões
orquestradas de peças da musicista Chiquinha Gonzaga inclusas) e boas atuações.
A maquiagem conseguiu recriar fidedignamente o semblante de Oswaldo Cruz no
ator Bruno Giordano – porém, Cecil Thiré não ficou tão parecido assim com
Rodrigues Alves, nem Nelson Dantas com Pereira Passos – comparem, se puderem,
com fotografias da época. Aliás, parece que a equipe de maquiagem se enganou e
colocou a aparência de Rodrigues Alves em Dantas, ao invés de Thiré.
Os
outros atores se esmeraram em suas interpretações. Kasting oscila bastante
entre a moça sofredora e a mulher já adaptada ao “sistema”, encarando a vida
com cinismo; Douglas Simon deu ao personagem Amaral todo o molejo de um típico
malandro de morro, no falar e no agir; Flávio Galvão faz do delegado Cardoso um
verdadeiro vilão de telenovela, fazendo Esther comer do pão que o diabo amassou
em suas mãos. Até mesmo Bukassa Kabengele, como Prata Preta, mostra que não
está para brincadeiras – como representante do povo, mostra que, na época, era
tudo ou nada.
O
filme, com a narrativa fragmentada entre as diversas histórias paralelas, ainda
é entrecortado com imagens filmadas no início do século XX, legendas e
simulações de notícias de cinejornal (no início do século XX, antes da
popularização do rádio, era comum que, antes da exibição de filmes no cinema, se
exibissem também notícias filmadas, ao modo atual dos telejornais). No fim,
André Sturm e sua equipe fizeram um bom trabalho – só pecou no final, ao não
deixar claro o destino de alguns personagens depois do fim da Revolta da
Vacina. De ter deixado a sensação de que Oswaldo Cruz saiu totalmente derrotado
na cadeia de eventos.
Pena
que, aparentemente, muita gente sequer ouviu falar desse filme. Além de
brasileiro, é filme de época. É o tipo de filme feito para exibição em escolas,
apesar da simulação de cenas de sexo – com personagens vestidos, é claro, como
era praxe da época – e discretíssimas cenas de nudez.
Não
sei dizer se esse filme, apesar de recente, é fácil de achar em DVD ou no
streaming de internet. Mas no YouTube, no momento em que escrevo, está
disponível. Inclusive, encontrei uma cópia que inclui legendas, cenas cortadas
e making of. Aqui: https://www.youtube.com/watch?v=fieH3FqzrZ0.
Não
desprezeis esses pedaços de História, brasileiros, se sabem o que é bom para
vós.
PARA
ENCERRAR...
...deixo
a vocês mais algumas páginas de O
Açougueiro, minha HQ folhetinesca, em publicação em pílulas há quase um
ano. Hoje, só consegui produzir duas páginas.
Mas
ainda mantenho a promessa de, em uma única postagem, colocar para vocês todas
as páginas já publicadas – ou quase todas. Para que vocês vejam a história em
sua unidade e depois tirem sua conclusão: será que essa HQ não está ruim?
Aguardem
novidades.
Até
mais!
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