Olá.
Depois
de algum tempo parado em função de minhas atividades paralelas – e, realmente,
coloquei sobre minhas costas muitos encargos, mais do que eu particularmente
gostaria de ter pego – trago a vocês mais um livro. Tudo bem, o período é de
festas de final de ano, mas livro é sempre uma boa opção de presente, seja de
qual gênero for.
O
livro de hoje é romance histórico. Seu autor é gaúcho, e um dos mais
consagrados ficcionistas brasileiros. Desse autor, devo ter referenciado, neste
blog, apenas uma ou duas vezes. E este romance foi um dos poucos, dele, a
ganhar adaptação para outras mídias.
Hoje,
então, falo a respeito de SONHOS TROPICAIS, de Moacyr Scliar.
Moacyr
Scliar (1937 – 2011), escritor, médico e professor universitário, foi,
reconhecidamente, um dos escritores gaúchos mais consagrados do Brasil, em suas
várias fases na carreira literária: do realismo fantástico à ficção histórica,
passando pelo gênero infanto-juvenil e pelas crônicas, onde explicava a seus
leitores conceitos religiosos, históricos e médicos de maneira erudita e ao
mesmo tempo simples.
O
escritor esteve sempre identificado com três principais aspectos de sua vida:
sua formação afetiva com sua cidade natal, Porto Alegre, RS; sua formação
acadêmica e atividade como médico (ele se formou em Medicina pela UFRGS em
1963, fez pós-graduação em Israel em 1970 e se tornou doutor em Ciências pela
Escola Nacional de Saúde Pública); e por sua formação religiosa, judaica (ele
cresceu no bairro porto-alegrense do Bom Fim, tradicional reduto judaico).
Esses aspectos definiram sua obra literária, marcada pelo seu estilo leve e
irônico, de humor judaico, agridoce e de meio-sorriso apenas, e pela erudição e
facilidade de tratar de diversos assuntos. Frequentemente, sua obra abordava o
judaísmo, o socialismo, a medicina e a vida da classe média, dentre outros
assuntos de interesse geral.
Além
dos mais de setenta livros que escreveu, entre romances, contos e
infanto-juvenis, Scliar foi um dos cronistas que abrilhantaram, por anos, o
jornal Zero Hora, de Porto Alegre.
Com o grupo que, enquanto estava vivo, incluía Luís Fernando Veríssimo, David
Coimbra, Martha Medeiros, Paulo Santana, Roger Lerina e outros (Fabrício
Carpinejar chegaria depois), Scliar ajudava a tornar Zero Hora uma referência nacional em crônicas diárias. Scliar tinha
dois grandes espaços obrigatórios no jornal: aos sábados, na segunda página do
caderno Vida – espaço atualmente
ocupado pelo também médico J. J. Camargo; e, aos domingos, no caderno Donna, onde uma de suas atrações
frequentes era sua coleção de Nomes que Condicionam Destinos, recolhimento de
situações em que o nome ou sobrenome de uma pessoa coincidentemente determinava
sua profissão ou a situação pela qual passou.
Seus
primeiros livros marcaram Scliar como um dos grandes representantes da
tendência literária do realismo fantástico – a realidade vista sob o ângulo dos
acontecimentos insólitos e não raro absurdos, como forma de crítica à vida
moderna. Essa tendência fora cultivada pelos literatos brasileiros entre os
anos 1950 e 1960, e teve como nomes maiores Murilo Rubião e José J. Veiga.
Scliar se diferenciou desses nomes pela adição do citado humor judaico em suas
narrativas.
Seu
primeiro livro foi O Carnaval dos
Animais, de 1968. Depois, vieram outros títulos, como A Guerra no Bom Fim (1972), O
Exército de um Homem Só (1973), Os
Deuses de Raquel (1975), O Ciclo das
Águas (1975), A Balada do Falso
Messias (1976), Mês de Cães Danados (1977),
Doutor Miragem (1979), Os Voluntários (1979), O Anão no Televisor (1979), O Centauro no Jardim (1980, eleito um
dos 100 melhores livros de temática judaica pela National Yiddish Book Center
dos Estados Unidos), Max e os Felinos (1981),
Cavalos e Obeliscos (1981), A Festa no Castelo (1982), A Estranha Nação de Rafael Mendes (1983),
A Massagista Japonesa (1984), A Condição Judaica (1987), Um País Chamado Infância (1989), Cenas da Vida Minúscula (1991), Sonhos Tropicais (1992), Um Sonho no Caroço do Abacate (1995), A Majestade do Xingu (1997), A Mulher que Escreveu a Bíblia (1999), Os Leopardos de Kafka (2000), O Irmão que Veio de Longe (2002) entre
outros – e só para nos determos entre os mais conhecidos. Vários desses livros
já tiveram tradução para doze idiomas.
Scliar
recebeu diversos prêmios literários, entre os quais três Jabuti (1988, 1993 e
2009), um da APCA (1989) e um Casa de Las Américas (1989). Ele sempre gostou de
contar, inclusive, das vezes em que teve de pagar pelos prêmios que recebeu. Foi
eleito, em 2003, membro da Academia Brasileira de Letras.
Ficou
famosa a polêmica em que Scliar se envolveu, em 2002, com o escritor canadense
Yann Martel – este, quando escreveu seu best-seller, A Vida de Pi, que deu origem ao filme premiado no Oscar, foi
acusado de plagiar Max e os Felinos.
Porém, Scliar nunca cogitou processar Martel, que afirmava ter apenas lido um
resumo de Max e os Felinos – ambos os
livros tratavam de garotos que ficavam à deriva, no meio do oceano, junto com
animais selvagens.
Scliar
teve dois livros seus adaptados para o cinema: Um Sonho no Caroço do Abacate foi adaptado sob o título Caminho dos Sonhos pelo diretor Lucas
Amberg, em 1998; e Sonhos Tropicais foi
adaptado para um filme homônimo, dirigido por André Sturm, em 2001.
Scliar
era casado desde 1965 com Judith Oliven, e teve um filho, Roberto. O passamento
do escritor foi no dia 27 de fevereiro de 2011, de falência múltipla nos
órgãos, pouco depois de uma intervenção cirúrgica para a retirada de pólipos no
intestino – mas que acabou evoluindo para um Acidente Vascular Cerebral (AVC)
enquanto se recuperava.
SAUDADES DE UM TEMPO DE MODERNIZAÇÃO
SONHOS
TROPICAIS, o livro do qual estou falando hoje, foi publicado pela primeira vez
em 1992, pela editora Companhia das Letras, e foi vencedor do Prêmio Jabuti de
Melhor Romance no ano seguinte. E, em 2002, foi adaptado para o cinema.
O
romance dá saltos entre o passado e o presente para resgatar a trajetória
conturbada do médico sanitarista Oswaldo Cruz (1872 – 1917) e reconstruir a
época da República Velha brasileira, com foco maior no evento conhecido como
Revolta da Vacina (1904), ocorrida no Rio de Janeiro. Consistiu em uma
tentativa de modernização da cidade do Rio de Janeiro que acabou evoluindo para
uma revolta social. Os fatos conhecidos e relatados a respeito da Revolta da
Vacina demonstram o quanto a sociedade brasileira resistia à modernização
promovida pela belle époque, ocorrida
entre o fim do século XIX e início do século XX.
O
romance é cheio de saltos entre passado e presente, combinando as vidas de três
personagens: a de Oswaldo Cruz; a do narrador da história, um médico
desempregado e alcoólatra; e a de um pesquisador norte-americano que vai se
encontrar com esse médico.
Bem.
Na época atual (o ano de 1992), se encontra o médico desempregado, cujo nome
nem é revelado ao longo da história. Ex-médico e vereador de uma cidade do
interior de Santa Catarina, atualmente residindo no Rio de Janeiro, sem
trabalho, a carreira arruinada por conta de um caso extraconjugal e do
alcoolismo, esse personagem tem um encontro marcado com o pesquisador
estrangeiro (que também não tem o nome revelado), que nesse momento, está no
Rio de Janeiro, hospedado em um hotel, aguardando contato. O pesquisador está
interessado na vida e na obra de Oswaldo Cruz, e o médico sabe tudo a respeito
da vida deste – o contato entre ambos foi feito por intermédio da amante do
médico.
Enquanto
aguarda o momento de se encontrar com o tal pesquisador, o médico tem uma conversa
imaginária com Oswaldo Cruz, e, enquanto relata e dá detalhes sobre sua
trajetória até ali, e imagina o que o estrangeiro está fazendo e que destino
vai dar para sua pesquisa (com o temor, inclusive, que a história seja
aproveitada para o cinema ou algum musical da Broadway), vai relembrando a vida
e carreira do sanitarista, cheia de sucessos e também de fracassos na tentativa
de modernizar o Brasil do início do século XX.
O
início do século XX era uma época de contradições: a ciência, a medicina e a
tecnologia avançavam assombrosamente, porém o homem se encontrava contaminado
pelos preconceitos. A modernidade fascinava, com os aparelhos elétricos, os
primeiros automóveis, maquinários industriais e monumentos grandiosos em
celebração da engenhosidade humana; mas essa modernidade andava do modo como os
europeus a concebiam: os europeus, principalmente os franceses, ditavam a moda
a ser seguida pelo resto do mundo, principalmente no pensamento. Acreditavam
serem os homens mais inteligentes de todo o mundo, enquanto o restante do
mundo, principalmente os brasileiros, eram os povos menos inteligentes,
civilizados. Grande parte dos eruditos europeus ainda via o Brasil como uma
terra selvagem e misteriosa, apesar das tentativas de nossas elites para não
ficar atrás na marcha do progresso.
Bem,
praticamente, no início do século XX, os europeus eram inteligentes e
civilizados, detinham grande parte do conhecimento científico e tecnológico,
mas sua mentalidade também era norteada pelo preconceito contra os povos
asiáticos, africanos e americanos (os “inferiores”), pelo antissemitismo
(preconceito contra os judeus) que seria embrião da “solução final” dos
nazistas alemães (leia-se holocausto), pela eugenia (a suposta superioridade da
raça branca), corroborada por controversos estudos que tentavam demonstrar,
pela medição dos atributos físicos humanos, que haviam tipos humanos mais
propensos a se tornarem criminosos – e aí, sobrava para os negros e indígenas,
principalmente.
No
Brasil, a situação evidentemente não era melhor. O poder político estava
concentrado nas mãos da elite, principalmente a cafeicultora, cujo maior
propósito de ação, nas esferas política e econômica, era o benefício próprio,
enquanto o povo ficava à própria sorte - afinal, 98% da população da época era de mulheres, militares e analfabetos, e, pelas regras, essa parcela não podia votar e concorrer a eleições; logo, por que se preocupar com essa parcela que não vota? A República ainda era jovem, e havia
diversos grupos digladiando-se para decidir quem seria responsável pelo destino
da nação: os positivistas, os militares, os “coronéis”. Os membros da elite
brasileira estavam já contaminados pelas ideias eugênicas circulantes na Europa
(já que, frequentemente, os filhos das pessoas ricas estudavam no exterior).
Culpavam principalmente a miscigenação pela suposta degradação do povo
brasileiro; a culpa também recaía sobre o clima tropical de nosso país, que
estimulava a suposta preguiça da população.
O SANITARISTA: VIDA E OBRA CONHECIDAS
Bem:
a tudo Oswaldo Cruz presencia em sua trajetória. A começar por sua formação,
marcada pela austeridade do pai, o também médico Bento Gonçalves Cruz. Em um
episódio do livro, o pai faz o jovem Oswaldo voltar para casa mais cedo, apenas
para que o menino arrumasse a cama que deixou desarrumada ao sair de casa. Anos
depois, o jovem Oswaldo consegue “dar o troco”: acaba fazendo, durante uma
reprimenda, seu pai parar de fumar com apenas uma frase. Mais tarde, faz uma
estripulia para provar seu amor à futura esposa, Emília.
Oh:
Oswaldo Cruz nasceu em São Luís do Paraitinga, estado de São Paulo, em 5 de
agosto de 1872; em 1877, ele e sua família se transferiram para o Rio de
Janeiro, onde o jovem Oswaldo fez todos os seus estudos iniciais. Oswaldo Cruz
ingressou na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro aos 15 anos. Formou-se
doutor em 1892, porém, a morte do pai, no mesmo ano, impede o aprofundamento de
seus estudos. Em 1896, ele consegue realizar seu sonho: especializar-se em
bacteriologia no Instituto Pasteur de Paris, na França – o mais renomado centro
de pesquisa do mundo na época.
De
volta ao Brasil, em 1900, Oswaldo Cruz cria o Instituto Soroterápico Federal,
instalado na antiga fazenda de Manguinhos – o objetivo inicial era fabricar
soro antipestoso, para debelar uma epidemia de peste bubônica no porto de
Santos. Assumindo a diretoria do Instituto em 1902, Oswaldo Cruz utilizou-o
como base de apoio técnico científico, deflagrando memoráveis campanhas de
saneamento, para combater as principais doenças que grassavam entre a população
– febre amarela, tifo, peste bubônica, cólera, malária. O Instituto
Soroterápico, mais tarde, é rebatizado como Instituto Oswaldo Cruz; o sítio de
Manguinhos recebe, posteriormente, o conhecido edifício em estilo mouro,
evocando os estudiosos do mundo muçulmano na Idade Média; e se torna, ainda
hoje, um dos principais centros de pesquisa médica do Brasil.
A
grande prova de fogo de Oswaldo Cruz foi o período entre 1903 e 1909, período
em que ocupou a Diretoria Geral da Saúde Pública, cargo equivalente, nos dias
de hoje, ao de Ministro da Saúde. O Presidente brasileiro da época, Rodrigues
Alves, tinha um plano arrojado para modernizar a cidade do Rio de Janeiro, na
época a vitrine do Brasil para os estrangeiros – e que, na época, era uma
verdadeira pocilga, com famílias em situação de risco ocupando casas na região
central, ruas estreitas e constantemente sujas e constantes surtos de doenças
graves como cólera, peste bubônica, varíola e febre amarela. O objetivo
principal da reurbanização do Rio era atrair empréstimos estrangeiros, para
minorar a crise pela qual a economia passava, e para isso era fundamental
apresentar uma boa imagem de nosso país – nada muito diferente do que o atual
governo fez com relação à Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas de 2016:
reformas de infraestrutura “para inglês ver”.
Rodrigues
Alves nomeou o engenheiro Pereira Passos para Prefeito do Rio de Janeiro, e
este começou a remodelar a cidade – investiu em infraestrutura, construiu
edifícios novos, demoliu antigos edifícios do centro da cidade que estavam
sendo usados como cortiços, mas obrigou a população pobre do centro da cidade a
se mudar para as periferias, inchando assim as favelas.
Enquanto
isso, Oswaldo Cruz se dedicava a livrar o Rio de Janeiro das doenças. Fez uma
campanha brilhante para debelar a peste bubônica – entre outras medidas, estava
a captura de ratos vivos, que eram trocados por dinheiro junto às autoridades
da Saúde Pública. Claro que essa medida teve adesão popular – e teve quem se
aproveitasse da situação. Um desses aproveitadores era o lendário Amaral dos
Ratos, que criava ratos em cativeiro com o único objetivo de vende-los à Saúde
Pública.
Porém,
a carreira de Oswaldo Cruz correu grandes riscos na hora de combater a varíola:
ele conseguiu, em 1904, que o governo aprovasse uma lei que tornava obrigatória
a vacinação de pessoas com mais de seis meses de idade, a mais eficiente forma
de se imunizar contra a doença que, na época, era uma das mais mortíferas. A
lei previa, inclusive, a obrigatoriedade da vacinação para casamentos, ingresso
no serviço público e no exército. No entanto, na época, a vacinação era um
método visto com desconfiança: a população não confiava no método de se curar
varíola injetando o germe atenuado no corpo (corria, inclusive, uma história
assustadora sobre uma moça inglesa, Lucy Smith, que se vacinou escondido da
família e, pouco depois, começou a se transformar em uma vaca – e essa história
alimentava o boato de que quem se vacinasse contra a varíola se transformava em
bezerro, muito pelo fato de a vacina ser feita com germes da varíola bovina); e
havia a questão moral – muita gente era contrária à vacinação apenas pelo
argumento tacanho de que as moças de família deveriam tirar toda a roupa para
serem espetadas com a lanceta (as vacinas eram aplicadas com esse instrumento
que lembrava uma caneta, e era mais dolorida que a seringa, que viria mais
tarde).
Além
dessa desconfiança, havia ainda o fato de que os agentes da Saúde Pública
utilizavam métodos violentos para garantir o cumprimento da lei: arrombavam
casas e aplicavam a vacina à força. Tais medidas não eram bem vistas pela
população que já sofria com a carestia e a expulsão forçada de suas antigas moradias.
E foi o germe de uma violenta revolta entre a população e o governo de
Rodrigues Alves. O movimento popular ainda contou com a adesão de setores que
faziam oposição ao governo – militares descontentes com o governo civil,
setores das classes médias e das elites. Durante alguns dias, a população fez
protestos e quebra-quebras nas ruas do Rio de Janeiro. A revolta popular foi
violentamente reprimida, muitos dos envolvidos acabaram deportados para o Acre,
mas houve algum resultado: a lei que tornava a vacinação obrigatória foi
revogada.
Enquanto
isso, Oswaldo Cruz era fortemente ridicularizado e atacado pela imprensa:
apenas umas poucas pessoas estavam a favor de seus métodos. Adversários faziam
uso, inclusive, de argumentos controversos para desmoralizar as teses
cientificamente comprovadas de Oswaldo Cruz. Mas o Dr. Oswaldo riria por último
em 1908: uma violenta epidemia de varíola matou cerca de 10 mil pessoas, e,
desta vez, a população fez filas nas portas dos postos médicos, para se vacinar
voluntariamente. No ano anterior, ele conseguira erradicar a febre amarela do
Rio de Janeiro. E, finalmente, Oswaldo Cruz teve seus esforços reconhecidos.
Obteve prestígio internacional. Representou o Brasil em importantes
conferências internacionais.
Mais
tarde, ele atuou na região da Amazônia, ajudando a combater as doenças
tropicais que grassavam entre os operários da Ferrovia Madeira-Mamoré, no Acre.
Em 1913, foi eleito para a Academia Brasileira de Letras, e, em 1915, deixou o
Instituto Oswaldo Cruz e se mudou para Petrópolis, no Rio de Janeiro, por
motivos de saúde – e chegou, inclusive, a ser eleito prefeito daquela cidade,
mas sem conseguir, no entanto, implementar as propostas de urbanização que
pretendia. O sanitarista acabou falecendo em 11 de fevereiro de 1917, de
insuficiência renal.
NO LIVRO
Bem.
Scliar e seu narrador esquadrinham praticamente toda a vida de Oswaldo Cruz, e
ainda o fazem interagir com diversos outros personagens da época, fazendo um
panorama geral do Brasil e do Mundo do início do século XX.
A
narrativa é cheia de citações a pessoas reais, que interagem ou não com o Dr.
Oswaldo. São contadas as histórias de Antoni van Leeuwenhoek, o pai da
microbiologia; Ignaz Semmelweiss, o médico húngaro que teve de se sacrificar
para comprovar os benefícios da assepsia na hora dos tratamentos médicos; Louis
Pasteur, o nome maior da bacteriologia; Daniel Carrión, outro que teve de se
sacrificar para provar que estava certo – mas teve a chance de fazer um colega
seu reconhecer seus erros.
Dentre
os personagens que interagem direta ou indiretamente com o Dr. Oswaldo, estão:
dois médicos do Instituto Pasteur, Ogier e Vibert, que, ao conhecerem o futuro
sanitarista, perdem muito tempo com um diálogo inútil sobre papagaios;
Rodrigues Alves, o “soneca”, por sua mania de ser flagrado dormindo durante
eventos oficiais; o prefeito do Rio, Pereira Passos; o líder da Igreja
Positivista, Teixeira Mendes, fascinado pela musa da corrente filosófica,
Clotilde Veau; além desses, aparecem, do lado do “povão”, Amaral dos Ratos, a
prostituta polonesa Ester e o líder dos revoltosos, Prata Preta. Esses três
travam importantes diálogos ao longo da narrativa – e Ester é a que tem a
história mais sofrida, visto que, por conta da condenável prática do “tráfico
de escravas brancas”, fora enganada com uma promessa falsa de casamento no
Brasil e, atraída para cá, é forçada a se tornar prostituta para se sustentar.
E ela vê sua “profissão” ameaçada por causa da campanha da Saúde Pública do Dr.
Oswaldo. Até mesmo o saci-pererê aparece em um diálogo imaginário com o Dr.
Oswaldo.
Vários
fatos históricos também compõem o panorama geral: Oswaldo Cruz, na França,
presencia o rebuliço gerado pelo Caso Dreyfus – movimento liderado por
intelectuais franceses em defesa de um oficial militar judeu que fora condenado
injustamente, e que acendeu a chama do antissemitismo francês; a Urbanização do
Rio de Janeiro e a Revolta da Vacina, propriamente ditas; e a organização do movimento
operário, guiado pelos preceitos comunistas – outra corrente filosófica
clandestina. Até a história de Lucy Smith é contada.
A
narrativa ainda é entrecortada com diálogos irônicos entre interlocutores não
identificados, em locais não especificados – gente comum discutindo o que está
acontecendo; e também com notícias, anúncios e pequenas quadrinhas extraídas de
jornais da época, aparentemente com pouca coisa a ver com a história, apenas
para montar o panorama da época.
E,
claro, com os pensamentos do narrador da história, que relembra sua vida e
hesita sobre seu encontro com o pesquisador estrangeiro. A grande expectativa
do romance é: será que o médico e o pesquisador irão realmente se encontrar? Ou
o destino vai se encarregar de “melar” esse encontro?
De
todo modo, o romance, em suas 214 páginas, cumpre o papel de mostrar que, no
Brasil, a “civilização” foi algo construído a duras penas: teve resistências em
mais de um setor da sociedade. A civilização brasileira à moda europeia, que em
princípio seria a melhor para o mundo como um todo, não passaria de um sonho
tropical? Por que nosso povo, tão mal instruído e guiado por superstições, foi
obrigado a engolir as inovações à força, ao invés de recebe-las com a devida educação?
Hoje, a ciência parece ter vencido; a moral mudou, preceitos tacanhos, como o
preconceito racial, parecem ter sido superados; mas o mundo não parece tão bom
assim. SONHOS TROPICAIS ainda mantém, de algum modo, sua atualidade. E merece
uma lida.
PARA ENCERRAR...
...trago
a vocês mais páginas inéditas de O
Açougueiro, a minha narrativa folhetinesca. No dia 20 de dezembro, vai
fazer um ano que ela está em publicação no Estúdio Rafelipe – sem previsão,
ainda, para a possível versão impressa. Porque ainda não terminou. Para 2017
tem mais páginas, e a história vai sendo tecida aos poucos.
Aguardem
e verão mais surpresas.
Na
próxima postagem: SONHOS TROPICAIS, o filme.
Até
mais!
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