sábado, 15 de maio de 2010

Livro: O HOMEM NO TETO

Olá.
Hoje vou novamente falar de livro. E, ao mesmo tempo, das agruras de ser desenhista. E, de quebra, falar de um grande artista.
Muita gente não faz ideia de como é a profissão de desenhista - seja desenhista de quadrinhos, de cartuns para jornais, de ilustrações para revistas, livros, ou simplesmente desenhistas amadores que desenham para si mesmos. Muita gente não faz ideia de como é ter diante de si uma folha de papel em branco e nas mãos um lápis, e do lado uma borracha, uma caneta, lápis de cor. Muita gente do meu meio não é acostumada a desenhar. Então, não sabe como é você estar diante de uma folha de papel e colocar nele, através do grafite de um lápis, toda uma vida. Criar uma vida que correrá ao bel-prazer do artista. Ninguém, em suma, entende os desenhistas.
Com estas considerações, introduzo a resenha de um dos livros mais extraordinários que li este ano: O HOMEM NO TETO, escrito e ilustrado por Jules Feiffer.

Feiffer, nascido em Nova York em 1929, é conhecidíssimo cartunista, dramaturgo, escritor e roteirista de cinema. Ele começou sua carreira como assistente dos estúdios Will Eisner, trabalhando em histórias do Spirit - personagem para o qual, inclusive, escreveu roteiros. Aliás, Feiffer costuma ser lembrado bastante por esse fato. Ao se desligar do estúdio, Feiffer inicia, em 1956, a sua conhecidíssima série de cartuns, chamada simplesmente de Feiffer, onde ele discorre sobre a vida, em um traço caligráfico, de cartuns sem cenários ou mesmo quadrinhos em volta da ação, e com um humor em sua grande parte intelectualizado, pessimista e depressivo, mas captando como poucos o espírito de Nova York, sua terra natal. Ele já publicou para diversas revistas consagradas, entre elas a Playboy, The New Yorker e Esquire. (Ele foi um dos artistas que entraram na recente publicação O Humor da Playboy).
Dentre as séries de cartuns que Feiffer publicou também, podemos destacar três: Munro, que foi adaptado para um curta-metragem de animação (vencedor do Oscar de Animação em 1961); Passionella, uma versão atualizada de Cinderella; e The Village Voice, pelo qual ganhou, em 1986, o prêmio Pullitzer.
No cinema, Feiffer escreveu também roteiros. Dentre os mais importantes, estão: Pequenos Assassinatos, de 1970, Ânsia de Amar, de 1971, e Popeye, de 1980, adaptação cinematográfica do célebre marinheiro realizada por Robert Altman, com Robin Williams no papel-título.
Feiffer ainda tem livros adultos no currículo. Um dos mais importantes, além de sua autobiografia (Backing into Forward), é The Great Comic Book Heroes, teórico. Feiffer começa a desenvolver literatura infanto juvenil nos anos 90, sendo o primeirão O HOMEM NO TETO, publicado em 1993. Nessa obra, se incluem, ainda: Um Zoológico no Meu Quarto, Na Beira da Estrada, Um Barril de Risadas e Um Vale de Lágrimas e Enquanto Isso... . Todos estes livros foram publicados no Brasil pela Companhia das Letras.
O HOMEM NO TETO foi lançado pela Companhia em 1995. Tradução de Carlos Sussekind. E o tema da obra é justamente os sentimentos de um cartunista. Para falar de cartunistas, ninguém melhor que um cartunista.
É a história de um garoto chamado Jimmy Jibbett. Um garoto normal, porém fraco nos esportes e mais ainda nos estudos, cujo único ponto a favor é o talento para o desenho. E é isso o que ele faz continuamente: desenhar histórias em quadrinhos, com a pretensão de um dia vir a ser um grande cartunista, maior até que Walt Disney. O problema é que o meio onde ele vive não lhes é favorável. A começar por sua família.
O pai de Jimmy, um engenheiro que leva a vida pelo lado mais prático, não acredita em artistas e em talento artístico, por isso acha que o talento de Jimmy é perda de tempo - muito embora o garoto tente chamar sua atenção espalhando pela casa páginas de HQ em que o pai é retratado como Indiana Jones. A mãe, desenhista de moda, é muito zen, sempre com a cabeça voando, que acredita que tudo pode ser resolvido na conversa, de modo que não ajuda muito. O grande problema são as irmãs de Jimmy: Lisi, a mais velha, tem como pior defeito conseguir as coisas no berro - apesar de gostar do irmão e de seus desenhos, é mandona e vive gritando com ele; Susu, a mais nova, sempre vem pedindo para que Jimmy largue tudo para brincar com ele. Das duas uma: ou Jimmy repele Susu, ou conta-lhes histórias do Urso Sabido, um personagem criado para distrair a menina. Assim como a mãe tem seu quarto para desenhar - local chamado por ela de "sanctum sanctorum" - no sótão, Jimmy estabelece o seu, no porão da casa, ao lado da lavanderia.
Um dia, Lisi mostra - contra a vontade de Jimmy - as páginas de HQ do garoto ao pai, que os critica. Isso deixa Jimmy desgostoso, e então ele decide criar um novo personagem para substituir aquela história. É num momento de depressão, quando se sentia pequeno como um inseto, que Jimmy concebe um super-herói chamado Mini-Man, um herói tão pequeno que seus inimigos não podem pegá-lo.
Com Mini-Man, Jimmy acaba conquistando um fã: Charley Beemer, o maior atleta pré-adolescente e o garoto mais popular no colégio onde estuda - apesar de este ser muito modesto, um príncipe. Em uma sociedade onde um garoto só é bem-sucedido se for bom nos esportes, o talento de Jimmy para o desenho é a sua tábua de salvação: é a única garantia de o garoto fazer parte do círculo de amizades do garoto mais popular. Representa muito para Jimmy. Por isso, Jimmy permite que apenas Charley leia suas historinhas.
Um dia, Charley, após fazer uma crítica às histórias de Mini-man, propõe a Jimmy lançarem juntos um personagem novo. Charley entra com a ideia, Jimmy com os desenhos. Pode-se imaginar o quanto Jimmy fica feliz com isso, nada pode ser melhor na vida que uma possibilidade dessas. E não pretende decepcionar Charley.
Só que ocorrem dois problemas: primeiro, o personagem proposto por Charley, Cabeça-de-Bala, é muito violento, o que demanda a Jimmy desenhar corpos decepados e sangueira, algo até então que não aparecia nas histórias do garoto; segundo, Jimmy tem problemas para desenhar mãos. Muitos desenhistas sabem: a mão e a parte mais difícil de desenhar de um corpo.
Bem. Feiffer vai apresentando, através de uma narrativa psicológica, a história de uma família. Os personagens são todos apresentados através de descrições longas e situações de importância para a trama. O uso da metalinguagem é constante - Feiffer conversa bastante com o leitor, em busca do melhor modo de passar as informações necessárias ao andamento da história.
Porém, o mais importante personagem da trama, depois de Jimmy, aparece bem depois de a família ser toda apresentada: o tio Lester, irmão da mãe de Jimmy. Lester é um compositor, que tenta a todo custo compor um grande musical para a Broadway. Como ele até então nunca foi bem-sucedido, ele é desacreditado pelo pai de Jimmy, que o considera um parasita desocupado, incapaz de procurar um emprego de verdade.
No entanto, algo estava para mudar. Numa tarde, Lester convida a família de Jimmy para assistir sua mais nova tentativa de musical, junto aos empresários que podem financiar a peça. O pai já considera a apresentação "um novo fiasco de Tio Lester", porém... o peça, chamada Robótica, não apenas agrada ao público presente, mas também mexe com a cabeça do pai, que se identifica com a história de um cientista, que não ama nem é amado, que cria uma mulher-robô. Não apenas Robótica será encenado na Broadway, como o pai, após uma conversa surpreendente com Jimmy na qual revela seus sentimentos para com os artistas, ajuda a financiar a produção.
Naturalmente, Lester vê e dá suas opiniões sobre os quadrinhos de Jimmy. Nessa parte, Jimmy começa a aprender sobre o fracasso: ele pode ser o caminho para a vitória. Basta verem o exemplo de Lester, que teve de fazer várias tentativas até conseguir escrever uma boa canção de amor. Segundo ele, foi doze anos. Mas é claro que Jimmy não aprende isso logo de vereda, diante de suas tentativas frustradas para desenhar mãos decepadas e agradar Charley.
Uma parte significativa do livro é o dia em que Jimmy apronta a história de Cabeça-de-Bala. Nesse dia, a mãe o chama para uma conversa enfadonha onde ela conta um episódio da vida de Picasso, que exemplifica a perda de tempo na vida; acaba vencendo, finalmente, uma discussão com a mãe, sempre avoada e que teimava em exigir algo que não havia pedido antes; se desentende com Lisi por causa do Cabeça-de-Bala - a menina se irrita ao saber que o irmão abandonou as próprias ideias para desenhar as de outra pessoa; e conta a Susu mais uma história do Urso Sabido, aos gritos. Ele se acha, com os desenhos violentos do Cabeça-de-Bala, um desenhista formidável - no entanto, tudo desmorona depois que Charley critica os desenhos. Isso deixa Jimmy praticamente paralisado, e o garoto passa algum tempo sem desenhar - apesar da insistência de Lisi para que voltasse a desenhar.
A vontade de desenhar, no entanto, só retorna após a primeira apresentação do musical de Lester, onde, num devaneio - e após ouvir um discurso de alguns adultos sobre as críticas - , Jimmy tem uma ideia de um novo personagem - o Homem no Teto do título.
Com a história de Jimmy, Feiffer vai tecendo uma alegoria sobre a atividade do cartunista e sobre as diversas batalhas da vida. Todos os cartunistas passam pelo que Jimmy passa na história: o reconhecimento de um talento, as críticas que podem salvar ou destruir um trabalho (algo pelo qual Lester também passa com seu musical - vários críticos podem achar o musical ótimo, mas tudo pode desmoronar se o crítico do principal jornal da cidade não gostar do espetáculo), a frustração por algo não sair direito em um desenho, a dificuldade de lidar com as pessoas próximas. Dá trabalho ser cartunista, mais ainda ser garoto. Quanto às frustrações, Feiffer entende do que está falando - alguns dos roteiros que escreveu para Spirit nem chegaram a ser desenhados. Um cartunista, antes de tudo, precisa aceitar que não pode fazer um trabalho formidável sempre - ele pode achar que fez o melhor desenho do mundo, mas o leitor pode achar que não. Por isso, é importante saber ouvir opiniões alheias.
Jimmy e Lester possuem uma coisa em comum: a vontade de serem reconhecidos pelo que gostam de fazer. É algo que todos nós almejamos na vida: tirar o máximo proveito de algo que amamos fazer, ainda que não sejamos plenamente reconhecidos. Vejam tantos artistas que lutam para fazerem valer sua arte. E o fracasso, Jimmy acaba aprendendo, é o caminho para a vitória. Para aprender a correr, é preciso primeiro aprender a andar.
As ilustrações de Feiffer também ajudam a criar o clima de angústia necessário à história - até mesmo para exemplificar os parágrafos descritivos do texto. Passar ao leitor os sentimentos de um garoto e de um cartunista. Dos dois juntos. A tradução e adaptação do livro deve ter sido uma das mais difíceis do Brasil, uma vez que era preciso traduzir também os textos das páginas de quadrinhos de Jimmy - que se misturam com o arte-finalizado de Feiffer.
Por isso, mais que os livros teóricos de quadrinhos, todo cartunista ou aspirante a quadrinhista deveria ler O HOMEM NO TETO. Feiffer sabe o que todos nós sentimos. Ele soube traduzir a frustração de todos nós através de um garoto. Ninguém melhor que um cartunista para compreender um cartunista e passar, a quem não é da área, todos os sentimentos da profissão. Uma das mais ingratas que existem.
Para exemplificar como é lidar com essas coisas, hoje posto dois desenhos que fiz para uma revista. Ambos são sobre o mesmo tema, uma matéria sobre a destruição do meio-ambiente. O primeiro desenho, segundo a opinião de quem me pediu, não havia ficado muito bom. Então, tive de refazer a ilustração, desta vez mais impactante. Eles pediram assim: "o planeta Terra, seco e desmatado, e uma planta nascendo. A ideia é a seguinte: tá f(...), mas ainda há esperança".
Olhem as duas e digam o que acham. A primeira não ficou mesmo impactante, não é?


Cada coisa pelas quais o cartunista precisa passar...
Até mais!

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