sábado, 31 de janeiro de 2015

MIRACLEMAN - Parte 1: Ele é esse relâmpago, ele é esse delírio

Olá.
Em 2014, o mundo dos quadrinhos ficou em polvorosa devido ao retorno às bancas de um personagem muito aguardado – e que estava no limbo por conta de ações judiciais e outras maluquices da indústria dos quadrinhos.
Esse personagem de quadrinhos nasceu na Grã-Bretanha, derivado de um personagem dos Estados Unidos.
Para começar, eu vou ter de dividir esta postagem em duas partes, pois o lançamento em bancas a que me refiro é praticamente um documento histórico.
Vou, então, começar contando a história de MARVELMAN, ou melhor, MIRACLEMAN. Por um destes dois nomes ele atende. Mais adiante explico por quê.


O CAPITÃO MARVEL
Para entender quem é o MIRACLEMAN, é preciso contar um pouco da história do super-herói estadunidense que deu origem a ele.
Praticamente qualquer pessoa nascida no século XX já deve ter ouvido falar do Capitão Marvel. Esse herói foi criado por Bill Parker – editor da Fawcett Publications – e Charles Clarence (C. C.) Beck, e sua primeira aparição foi na revista Whiz Comics #2, da Fawcett, de fevereiro de 1940. Com as feições do ator Fred MacMurray, ele quase se chamou, antes da estreia, Capitão Trovão, mas, como o nome já havia sido usado para um herói da editora Fiction House, foi mudado para Marvel, forma reduzida de marvelous (maravilhoso). O herói não podia ter escolhido época melhor para nascer: na época, devido ao grande sucesso do Superman, da editora National Comics, futura DC Comics, muitas editoras estadunidenses estavam criando seus superseres para fazer frente ao Homem da Capa Vermelha. Era a era de Ouro dos Super-Heróis.
O Capitão Marvel é o alter ego do jovem Billy Batson, um garoto órfão e morador de rua que, um dia, é levado diante de um mago ancião, chamado Shazam, que buscava um sucessor em sua tarefa de combater as forças do mal. A partir daquele encontro, toda vez que o garoto dizia a palavra SHAZAM, um relâmpago o atingia, e ele se transformava no “mortal mais perigoso da Terra” – em idade adulta, com a roupa vermelha e amarela, e poderes como superforça, supervelocidade, voo e muito mais. Só o fato do alter ego do herói ser um garoto e, portanto, apesar da virilidade e da aparência de homem feito ainda trazer a inocência de um menino, já tornavam o Capitão Marvel um herói muito rentável e, assim, o herói mais vendido do século XX nos Estados Unidos.
Ah: a palavra SHAZAM é um acrônimo de: Salomão – Sabedoria, Hércules – Força, Atlas – Vigor físico, Zeus – Poder, Aquiles – Coragem, e Mercúrio – Velocidade. De cada entidade mitológica, o Capitão Marvel possuía cada uma destas qualidades. Mas, ainda assim, a vida de Billy Batson não é fácil, pois precisa conciliar a atividade heroica com o dia-a-dia: a escola, o trabalho como radialista (conseguido após o Capitão Marvel salvar uma estação de rádio da sabotagem de um vilão)... e precisa esconder de todo mundo que mora e se sustenta sozinho.
O Capitão Marvel viveu ingênuas, porém incríveis aventuras, roteirizadas por Otto Binder (que substituiu Bill Parker depois de alguns números) e em grande parte desenhadas por Beck, e teve uma rica mitologia. A começar, pelos aliados: pouco tempo depois, Billy Batson descobre que a irmã, Mary, estava viva e vivendo com outra família, e esta, após uma série de eventos, recebe poderes e se transforma em Mary Marvel, com uniforme igual ao irmão (exceto pela minissaia, claro). Mais tarde, um amigo dos irmãos, paraplégico, também recebe poderes, se transformando em Capitão Marvel Jr. quando diz o nome “Capitão Marvel”. No entanto, quando Mary Marvel e Capitão Marvel Jr. estão ativos, os poderes do Capitão Marvel ficam reduzidos, já que os três partilham do poder. E ainda há o Tio Marvel, os Tenentes Marvel, o tigre de pelúcia Malhado (Tawky Tawny) e até um coelho, Hoppy. Estava constituída a Família Marvel.
Os inimigos do Capitão Marvel também são interessantes, e tão pitorescos quanto os vilões do Batman. A começar pelo cientista louco, Dr. Sivana (que no Brasil ganhou uma letra a mais no nome, chamando-se Dr. Silvana), e seus filhos, sempre com ardis para tentar dominar o mundo; o Duende Incendiário, o piromaníaco; o Adão Negro, uma cópia maligna do Capitão; e o Sr. Cérebro (Mr. Mind), um vilão misterioso que, tempos depois, revelou ser uma minhoca verde de óculos, que se comunicava por um amplificador de voz e tramava planos terríveis contra a Família Marvel. Entre outros, que gostavam de apelidar o herói de “paspalhão” e de “Capitão Fraldinha”.
Com o sucesso que fez, o Capitão Marvel foi o primeiro super-herói a ganhar um seriado de cinema, em 1941, com Frank Coghlam Jr. como Billy Batson e Tom Tyler como Capitão Marvel (posteriormente, Tyler encarnaria o Fantasma em seriado para cinema). Aliás, foi nesse mesmo ano que a National Periodical, a editora rival, incomodada talvez pelo fato de o Capitão Marvel estava vendendo mais que o Superman, iniciou um processo judicial contra a Fawcett, alegando plágio – o Capitão Marvel seria uma cópia do Superman, algo que, naquela época, era comum entre as editoras rivais da National. Essa batalha judicial estendeu-se por muitos anos – mesmo com um parecer favorável à Fawcett concedido em 1948, e o recurso da National de 1951 – até que, em 1953, a Fawcett, devido às baixas vendas que estava enfrentando no período, e devido aos altos custos do processo judicial, acabou por encerrar sua linha de quadrinhos, muito antes de se saber o resultado do referido processo. E ainda fez um acordo com a National, que adquire os direitos sobre o personagem. Desse modo, o Capitão Marvel parou de ser publicado e de ter histórias produzidas nos EUA. O “Capitão Fraldinha” acabou congelado até os anos 70. Em 1973, a National, agora DC Comics, compra a Fawcett, e ressuscita o Capitão Marvel, incorporando-o ao seu elenco de super-heróis – mas, infelizmente, sem o mesmo estrelato de outrora. O personagem só começou a ser mais valorizado por volta dos anos 90, quando passou a estrelar novos gibis, e passou a ter aparições na TV, como a série produzida pela Filmation entre 1974 a 1977, com Michael Gray como Billy Batson e Jackson Bostwick e John Davey como o Capitão Marvel, e aparições nas animações da Warner Bros, sendo a mais marcante na série Batman – Os Bravos e os Destemidos, de 2008. Ah: nos quadrinhos, sua participação mais marcante foi na série O Reino do Amanhã, de Mark Waid e Alex Ross, onde suas ações ajudaram a decidir os rumos da trama.

O MARVEL DA MARVEL
Pois vocês devem saber que existem dois Capitães Marvel. O primeiro é o da Fawcett / DC. Mas vocês devem estar se perguntando, com esse nome, por que o Capitão Marvel pertence à DC e não à Marvel Comics? Bem, a Marvel Comics tem, sim, o seu Capitão Marvel, mas um Marvel muito diferente do Capitão Marvel original. Ou melhor, vários Capitães Marvel.
Nos anos 60, a Marvel Comics, já vencedora com a sua linha de heróis – Quarteto Fantástico, Hulk, Homem Aranha, Thor, Homem de Ferro, Vingadores – resolveu criar um Capitão Marvel, a fim de obter os direitos sobre uma revista com esse nome. E, em 1967, na revista Marvel Super Heroes, aparece o Capitão Marvel, criado por Stan Lee e Gene Colan. Mas com um conceito diferenciado: esse Capitão Marvel – na verdade, Mar-Vell – é um militar da raça kree, uma raça alienígena inimiga da Terra, que se rebelou contra seus superiores e passou a defender nosso planeta. Mar-Vell, vítima de ardis de inimigos de sua própria raça – sofreu preconceito dos krees por ter feições caucasianas, diferentes de sua raça – acaba sendo chamado de Marvel pelos terráqueos por engano, por causa da pronúncia de seu nome. E, aqui na Terra, ele assume a identidade de um cientista morto em eventos causados pela invasão dos krees, o Dr. Walter Lawson. Ele fora condenado ao exílio na Zona Negativa, um universo paralelo, por seus “crimes”, mas arranjou uma maneira de voltar ao nosso universo graças aos braceletes energéticos. Mais: ele contatou mentalmente Rick Jones, o amigo do Incrível Hulk, e o “usa” para vir à nossa dimensão – toda vez que Mar-Vell vem para a Terra, Jones acaba indo para a Zona Negativa, e, com o toque de seus braceletes, concluída a missão, os dois trocam de universo.
Mas este Marvel, apesar de ter ganho revista própria e aventuras marcantes, sempre foi um personagem secundário dentro do universo estelar da Marvel. Apesar de, em 1982, ter estrelado uma das mais dramáticas histórias da história das HQ, A Morte do Capitão Marvel, de Jim Starlin, onde o herói acaba perecendo devido ao câncer – uma das raras oportunidades em que o tema foi abordado nas HQ. Depois, houve outros heróis que assumiram a alcunha do Capitão Marvel, incluindo mulheres – como a heroína que ficaria conhecida como Miss Marvel, a agente da CIA Carol Danvers, que ganha poderes em um acidente em que o DNA de Mar-Vell/Lawson acaba misturado ao seu.
Por causa desse registro, a DC, quando decidiu relançar a revista do Capitão Marvel, teve de mudar o nome da revista para Shazam!. E todos os produtos relacionados ao Capitão Marvel original tem a marca Shazam!.

AGORA, SIM, EIS QUE ANUNCIO O HOMEM MARAVILHA
O Capitão Marvel era publicado com muito sucesso no Brasil, e, mesmo quando a Fawcett encerrou o título em 1953, a Rio Gráfica Editora (atual Globo), que publicava as aventuras do herói, não encerrou o título – compensou isso lançando histórias da Família Marvel produzidas aqui mesmo, assinadas por Evado, Valmir Amaral e Oliveira. Os títulos do Capitão Marvel foram publicados até 1968 no Brasil.
Na Inglaterra, a situação era diferente. Em 1953, o editor Len Miller, cuja editora, a Len Miller & Son, detinha os direitos de publicação do Capitão Marvel na Grã Bretanha – e em preto e branco, ao contrário da edição estadunidense, colorida – viu ameaçado o seu título mais bem-sucedido. Então, encomendou um novo personagem ao roteirista e desenhista Mick Anglo. E este concebeu um novo super-herói, mais ligado à ciência: o Marvelman, que fez sua estreia no ano seguinte. O gibi do Capitão Marvel mudou o nome para Marvelman, mas a numeração continuou a mesma – assim, a primeira edição de Marvelman é a de número 25, de fevereiro de 1954. Este herói, apesar de fisicamente diferente do Capitão Marvel – alto loiro e com roupa azul, vermelha e amarela – tinha pontos em comum com ele.
Para começar, a identidade secreta de Marvelman, Micky Moran, também era jornalista, e também foi escolhido para ganhar poderes para lutar contra o mal. No caso, um recluso cientista, chamado Guntag Barghelt, que descobrira, após anos de pesquisa, a palavra-chave do universo. Este escolheu Moran por ser um jovem honesto, estudioso e de grande integridade moral, enfim, capaz de bem usar os poderes provenientes dessa palavra. Após submeter Moran a um tratamento com uma máquina experimental, Barghelt passa a Moran a palavra-chave: KIMOTA! (“atomic” ao contrário, com “k” no lugar do “c”). Moran se transforma no Marvelman, ao pronunciar “kimota”, com uma pequena explosão atômica no lugar do relâmpago.
Se o Capitão Marvel tinha ajuda de Mary Marvel e do Capitão Marvel Jr., Marvelman tinha a ajuda de dois jovens que partilham dos mesmos poderes: Dicky Dauntless, um jovem mensageiro, se transforma no Jovem Marvelman (Young Marvelman); e Jonathan Bates, um garoto de sete anos, se transforma no Kid Miracleman. Os três formavam a Família Marvelman. E a galeria de vilões também ganharia equivalentes: se Capitão Marvel enfrentava o Adão Negro, Marvelman enfrentava o Jovem Torpe; se Capitão Marvel enfrentava o Dr. Sivana, Marvelman enfrentava o Dr. Gargunza, igualmente feio e igualmente maluco. E por aí vai. Mas o grande forte das histórias do Marvelman é enfrentar bandidos comuns, como mafiosos e cientistas inescrupulosos, em tramas que, em alguns momentos, envolvem avanços científicos, como máquinas, computadores e artefatos radioativos.
Marvelman fez sucesso na Inglaterra – e também ganhou notoriedade no Brasil, onde suas aventuras, tão ingênuas quanto as do original (a ponto de, pelos padrões de hoje, serem consideradas mal-escritas), era publicadas na revista do Capitão Marvel. Aqui, Marvelman recebeu o nome de Jack Marvel, e o Jovem Marvelman, Jack Marvel Júnior. Marvelman foi publicado com sucesso de 1954 até 1963. Um título complementar, Marvelman Family, foi publicado de 1956 a 1959.
O personagem, após o encerramento das atividades da Len Miller, permaneceu esquecido até 1982, quando o editor Dez Skinn, ex-editor da divisão inglesa da Marvel Comics, a Marvel UK, e criador da editora Quality Communications, lança a revista Warrior, que se tornaria uma das mais celebradas publicações de super-heróis da Inglaterra. Skinn chama o então novato Alan Moore, que ao longo dos anos 80 ganharia fama e fortuna com Monstro do Pântano, Watchmen e outras obras, para recriar o Marvelman. E foi o que Moore fez: renovou o herói e criou para ele tramas violentas e muito humanas (apoiadas em seu estilo de texto verborrágico e um tanto prolixo), um verdadeiro estudo sobre o significado dos super-heróis e dos limites do gênero. Com arte de Gary Leach, Alan Davis, John Ridgway, Chuck Austen, Rick Veitch e John Totleben, ao longo dos anos. Ah: também foi na Warrior que Moore escreveria outra de suas obras-primas, V de Vingança. Marvelman pavimenta o caminho para a Invasão Britânica nas editoras dos EUA, quando autores da Inglaterra, Escócia, País de Gales e das duas Irlandas escrevem HQs para a Marvel e para a DC – depois de Alan Moore e Alan Davis, chegam gente como Neil Gaiman, Grant Morrison, Dave McKean e muitos outros.
As novas aventuras de Marvelman começam com um Micky Moran levando uma vida nada invejável: sem poderes nem lembranças de que um dia foi Marvelman, devido a uma aventura anterior, casado, trabalhando como jornalista e acometido de uma dor de cabeça interminável e pesadelos com seres superpoderosos. Até que, um dia, quando estava fazendo uma cobertura jornalística de um protesto em uma usina nuclear, vê a mesma sendo atacada por ladrões que pretendiam roubar material nuclear para posteriormente vender a terroristas. Feito refém, Moran passa mal e, de repente, recorda a palavra mágica – KIMOTA! – que o transforma em Marvelman novamente. Marvelman, mais tarde, explica à esposa que, em 1963, ele havia, junto com seus parceiros Jovem Marvelman e Kid Marvelman, enfrentado um dos engenhos do Dr. Gargunza e, de repente, todos foram atingidos por uma bomba nuclear, o que fez Moran perder a memória – isso ajuda a explicar o hiato das aventuras do personagem entre 1963 e 1982. Mas, nessa nova fase, mais sombria e violenta, Marvelman acaba tendo de enfrentar um inimigo muito pior do que qualquer outro do passado: o próprio ex-parceiro, Jonathan Bates, o Kid Marvelman, agora transformado em um empresário enlouquecido, um assassino sádico e, pior, muito mais poderoso que o herói.
O nome Miracleman foi dado ao herói quando ele passou a ser publicado por outras editoras – primeiro pela Pacific Comics, depois pela Eclipse Comics, que lançou novas histórias de Alan Moore e Alan Davis. Motivo: a Marvel havia registrado a marca. Quando chegou aos EUA, Marvelman foi rebatizado como Miracleman, portanto. Mas tem mais: o personagem foi, ao longo dos anos, alvo de processos judiciais.
O primeiro foi justo quando o personagem era publicado pela Quality: Skinn, quando adquiriu o personagem, não o havia comprado de Mike Anglo, a quem, em tese, os direitos ainda pertenciam. Skinn acreditava que, por ter sido publicado por uma editora já falida, ninguém teria direitos sobre o Marvelman. Os direitos haviam sido repartidos entre Skinn (30%), Moore (30%), Davis (30%) e a editora (10%).
Mais tarde, Miracleman teve histórias escritas por Neil Gaiman, a quem Moore repassou sua parte nos direitos do Miracleman após o personagem passar para a Eclipse.
Mais tarde, Todd MacFarlane, criador do Spawn e co-fundador da Image Comics, comprou os personagens da Eclipse Comics, que falira nos anos 90, incluindo os direitos do Miracleman. E ainda teve de enfrentar um processo judicial por parte de Gaiman, não só pelos direitos do Miracleman, mas também da personagem Angela, que Gaiman criara para as histórias do Spawn. Gaiman ganhara o processo em 2004, mas descobriu que os direitos do Miracleman ainda pertenciam a Mick Anglo. E, enquanto isso, a série foi interrompida na metade de um arco chamado Silver Age e nunca mais foi concluída.
No Brasil, a última vez em que a saga de Miracleman foi publicada foi em 1989, pela obscura editora Tannos, que não publicou a saga de Alan Moore até o fim.
Em 2009, a Marvel Comics compra os direitos de Marvelman, e diretamente de Mick Anglo. E, em janeiro de 2014, começou a republicar as sagas de Moore e Gaiman, e a tomar medidas para concluir os arcos incompletos do personagem e para licenciar o personagem também para ações de merchandising. Também já foi anunciado que, em 2016, novas histórias do Miracleman começarão a ser produzidas. Anglo faleceu em 2011, feliz em ver seu personagem de volta depois de tanto tempo. Já Moore concordou com tudo, desde que seu nome seja tirado dos créditos.
A publicação do Marvelman já está em curso nos EUA, e agora no Brasil! Saibam mais na próxima postagem.
Como desenhos de hoje, vocês puderam ver pin-ups meio matadas do Capitão Marvel da Fawcett, do Capitão Marvel da Marvel e do Marvelman / Miracleman. As outras imagens do Marvelman foram extraídas da internet.

Até mais!

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