Olá.
Enquanto
escrevo, estamos na véspera do dia 12 de outubro. Para a maior parcela da
população brasileira, é o Dia da Criança; para a outra maior parcela, é o Dia
de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil. Para outra parcela, é o Dia do
Descobrimento da América.
Foi
por essa segunda celebração que fiz a escolha do que falar hoje: de livro.
Apesar
do nome, é um livro de História, não de devoção. APARECIDA, de Rodrigo Alvarez,
foge de padrões pré-estabelecidos, e, por isso, pode ser lido sem maiores
receios.
APARECIDA – A Biografia da Santa que
perdeu a cabeça, ficou negra, foi roubada, cobiçada pelos políticos e
conquistou o Brasil foi lançado em setembro de 2014, pela Globo
Livros. O autor, Rodrigo Alvarez, é repórter justamente da TV Globo – é o atual
correspondente da emissora de Jerusalém. De formação católica, sua grande
preocupação, em seu mais recente livro – ele também é autor de Haiti Depois do Inferno (2010, também
pela Globo Livros) – foi contar a história de Nossa Senhora Aparecida de modo
que leitores de quaisquer credos pudessem apreciar a leitura, independente das
crenças, se as suas religiões permitem o culto de imagens ou não. O mote do
livro é buscar compreender como uma simples imagem de Maria, mãe de Jesus
Cristo, feita de barro, e que de início não tinha grandes atrativos, conseguiu
se tornar um dos maiores símbolos do Brasil – ganhando até novela.
Basicamente,
Nossa Senhora Aparecida é apenas uma representação da padroeira de Portugal,
Nossa Senhora da Conceição, mas, devido a tudo o que passou ao longo de quase
300 anos de história, ganhou vida própria; tudo graças a supostos milagres
atribuídas à presença da imagem que, posteriormente, ganhou um manto de veludo
azul estampado, que lhe garantiu a icônica composição triangular; a coroa de
ouro e joias, presente da Princesa Isabel (aquela que libertou os escravos em
1888); ganhou primeiro uma capelinha de beira de estrada; depois, uma igreja,
construída a muito custo; e, posteriormente, uma basílica, a segunda maior do mundo
– atrás apenas da Basílica de São Pedro, no Vaticano. A Basílica de Aparecida,
em Aparecida do Norte, estado de São Paulo, aliás, é cópia da Basílica de
Washington, capital dos Estados Unidos desde o seu projeto – mas ninguém parece
se importar. Afinal, mais importante que a Basílica, que todos os anos atrai
peregrinos de todo Brasil, que chegam às caravanas e praticamente lotam a
cidade, é mesmo a imagem, que se tornou um fator de unidade ao Brasil, no tempo
em que este país ainda nem era Brasil.
Todo
católico nascido no Brasil já deve conhecer a história da “santa negra”:
começou em 1717, quando três pescadores da região de Guaratinguetá, à margem do
rio Paraíba do Sul, em São Paulo, encontraram, em uma pescaria com redes,
primeiro, o corpo de uma santinha de barro, que se prendeu em suas redes de
pesca; depois, eles conseguiram tirar a cabeça da santinha do rio. E, em
seguida, como num milagre, a pesca, que naquele dia estava escassa, terminou
farta. E aquela pescaria era providencial, visto que uma importante figura
política do Brasil Colônia estava de passagem pela região, e foi exigido dos
pescadores um lote de peixes para o preparo de um banquete. Esse milagre dos
peixes foi o primeiro milagre atribuído àquela imagem miúda de barro de Nossa
Senhora da Conceição. Como muitos dos relatos a respeito da santinha vem da
tradição oral, portanto sem garantia de veracidade, só se podem fazer
especulações a respeito de sua história. E grande parte do que a Igreja
Católica prega a respeito de seus locais e objetos milagrosos, como se sabe,
quase sempre não se sustentam na base dos documentos escritos, mas da tradição
oral, das culturas menos ou nada letradas. Não é como hoje.
Vários
milagres são atribuídos à imagem de barro que ganharia uma nova denominação: Nossa
Senhora Aparecida. Um escravo cujas correntes arrebentaram diante da imagem
enquanto rezava; uma menina cega que voltou a enxergar; um cavalo que prendeu
uma pata em um degrau da capela quando um homem tentou invadi-la; um homem que
salvou-se do ataque de uma onça pela intercessão de Aparecida; as velas da
capela que se acenderam misteriosamente quando uma mulher rezava; e outros
milagres atribuídos à imagem, negra provavelmente por conta do lodo do rio.
Sabe-se lá por quanto tempo aquela imagem decapitada ficou no fundo do rio até
ser encontrada: teria caído da carga de um mercador que passava por ali? Teria
sido jogada fora depois de ser quebrada, segundo uma crendice da época?
Mas
como aquela imagem de barro sem grandes atrativos se tornou o símbolo do
Brasil, quando este ainda era colônia de Portugal? Como Aparecida conseguiu
sobreviver, popular até hoje, às mudanças na política brasileira, à corrupção
promovida às suas custas e, principalmente, a um atentado que a deixou em
pedaços? Tudo isso, Alvarez procura responder, em uma linguagem jornalística,
fácil de entender, com inserções de humor, e sem cair na hagiografia, na
linguagem devocional, positivista. APARECIDA não é um livro de devoção: é um
relato de como a história da imagem confundiu-se à do Brasil.
O
livro é dividido em quatro partes. O ponto de partida da primeira parte, Atentado e Mistérios: o Renascimento, é
o tal atentado: em 16 de maio de 1978, um jovem chamado Rogério Marcos invadiu
a igreja de Aparecida, conseguiu pegar a imagem do cofre e a derrubou no chão,
quebrando-a em pedaços. Depois disso, fugiu e, mais tarde, acabou sendo preso. Por
que Rogério Marcos fez isso? Teria sido influenciado pelo Diabo, e não por um
anjo, como afirmou? Seria apenas um doente mental? Teria sido influenciado
pelos discursos das igrejas protestantes, que proíbem o culto a imagens? Quem
sabe? O que se sabe é que o atentado deixou os fiéis muito preocupados; os
padres de Aparecida, principalmente o cônego da época, Padre Izidro de Oliveira
Santos, mais ainda. Pior ainda é que a cabeça da imagem praticamente reduziu-se
a farelos, e, mesmo com as partes que conseguiram ser recuperadas, não seria
possível reconstruí-la. Foi um desafio e tanto para a restauradora designada
pelo Museu de Arte de São Paulo, Maria Helena Chartuni, que nem religiosa era.
Chartuni
conseguiu cumprir a tarefa de juntar os cacos de Aparecida, mas, para tanto,
teve de praticamente fazer uma nova Aparecida. A imagem que hoje vemos não é
mais a que foi encontrada pelos três pescadores. Mais curioso é o material
usado por Chartuni para refazer a imagem: cola Poxipol, importada da Argentina,
hoje uma técnica até banal. Mas o maior desafio de Chartuni foi a intromissão
constante de Padre Izidro, que não apenas amava aquela imagem como se fosse
dele, mas chegou ao cúmulo de pegar a imagem restaurada, escondê-la em seu
quarto, repintá-la em um tom mais claro – Chartuni, na restauração, deixou-a na
cor escura próxima à original – e ainda tentou arranhar o olho da imagem,
ferindo o dedo. Hoje, Nossa Senhora de Aparecida está não apenas diferente,
como mais resistente, ao contrário de séculos anteriores, em que a cabeça era
constantemente remendada, e mal remendada. E, hoje, nem é mais a imagem
original que participa das procissões anuais, mas réplicas; a primeira se
encontra guardada em local ainda mais seguro.
Só
depois é que Alvarez, na segunda parte do livro, Identidade: Aparecida, retorna ao século XVIII, para recontar, ou
tentar recontar, a história daquela imagem de Nossa Senhora da Conceição, desde
que foi encontrada no rio pelos três pescadores. Ele chega a fazer especulações
sobre a origem da imagem – o local onde foi confeccionada. Não consta maiores
informações sobre a vida dos três pescadores – João Alves, Domingos Garcia e Felipe
Pedroso. O que se sabe é que foi Pedroso quem começou o culto, ao levar a
imagem para casa e montar-lhes um altar. É contada, inclusive, a história da
tal autoridade política, dom Pedro Miguel de Almeida Portugal, governador
sanguinário que, na realidade, estava de passagem pela região – mas, mesmo no
diário de viagem de seu escrivão, não consta se o tal banquete, onde os peixes
foram exigidos, foi realizado. Almeida Portugal estava a caminho da região de
Minas Gerais, e, entre suas atribuições durante sua passagem pela região do
estado de São Paulo, foi o julgamento de criminosos, com algum requinte de
crueldade. E, já nessa época, era comum que os fiéis deixassem doações na
capela que foi construída, à beira de uma estrada, e inaugurada em 1745 – e que
houvesse gente que se aproveitasse de tanta devoção para faturar.
Apesar
do crescimento do culto e da fama dos milagres de Nossa Senhora de Aparecida, o
século XIX foi o mais árduo para a santa, conforme mostra a terceira parte do
livro, Trevas e Redenção. A Igreja de
Aparecida construída nessa época, hoje conhecida como Basílica Velha, foi
construída a muito custo. É aí que se destaca uma figura peculiar: o padre
Joaquim do Monte Carmelo. Para construir a Basílica Velha, dom Carmelo teve de
enfrentar inclusive gente corrupta: devido ao regime de padroado da época do
Império Brasileiro, os tesoureiros de Aparecida eram nomeados pelo governo – e,
no geral, era gente que tinha por hábito roubar as doações em dinheiro dos fiéis
dos cofres da igreja, e em benefício próprio. Contra essa administração, que
deixava a vila de Aparecida às moscas, ergueu-se dom Carmelo, que teve de mover
céus e terra para que Aparecida ganhasse uma igreja mais digna – a Basílica
Velha foi concluída e inaugurada em 1888. E, apesar de tudo, acabou morrendo
esquecido, com fama de encrenqueiro e sem mais poder rezar missas. Destaque
ainda para a época da vinda dos padres alemães, que passaram a administrar a
paróquia de Aparecida depois de uma árdua viagem, e que significou o fim do
período de trevas para Aparecida – ao menos no campo religioso. No político, a
imagem teve de aguentar a laicização forçada promovida pela Proclamação da
República em 1889, e que durou até a ascensão de Getúlio Vargas ao poder, em
1930.
E
chegamos à última parte do livro, A
Rainha, os Papas e os Presidentes – Alvarez volta ao século XX, com uma
pequena passagem pelo século XIX. Pois foi em 1868 que a Princesa Isabel, em
agradecimento a uma graça alcançada – o nascimento de seu primeiro filho com o
Conde d’Eu – deu à imagem a icônica coroa de ouro. E ela e o marido voltariam
lá mais de uma vez, antes de irem embora do Brasil, em 1889. A grande redenção
de Aparecida se deu depois que Getúlio Vargas ascendeu ao poder, em 1930 – apesar
de não ser religioso, o presidente viu no culto a Aparecida uma oportunidade de
conseguir uma melhor imagem junto ao povo. A santinha de barro ainda presenciou
o período difícil da Revolução Constitucionalista de São Paulo (1932), quando a
Basílica chegou a servir até de quartel-general aos revoltosos. E Aparecida
ainda teve, em sua popularidade, uma ajudinha do Regime Militar (1964 – 1985):
o governo de Humberto Castelo Branco financiou a viagem de Nossa Senhora
Aparecida pelas capitais brasileiras. E, sendo símbolo do Brasil, o Regime
Militar valorizou e divulgou o culto à imagem fortemente – enquanto, como se
sabe, inimigos do governo eram presos e torturados. Foi também nessa época em
que a Basílica Nova foi construída, depois de décadas – a inauguração foi em
1980, com a igreja ainda inconclusa. Tudo porque o Papa João Paulo II, em sua
viagem ao Brasil, fez questão de passar por Aparecida e beijar a imagem. E não
foi o único a fazer isso: os Papas Bento XVI e Francisco fizeram questão de ver
a imagem com seus próprios olhos.
Alvarez
passa por alto, e nem mesmo cita, os milagres atribuídos a Aparecida; sua
preocupação é mesmo a história, longe do sagrado, perto do profano. Por isso,
pode ser lido sem restrições. Não sem motivo – e podem ser apontados muitos
motivos – APARECIDA foi best-seller entre 2014 e 2015.
Não
será surpresa se o livro ganhar adaptação para cinema em breve – afinal, com as
Organizações Globo por trás... De todo modo, para quem é apreciador de
História, vale a pena ter na estante. Esperamos que a pessoa, a quem de repente
você resolver presentear com esse livro, seja entusiasta de História, tanto
quanto de Religião.
OUTRA NOSSA SENHORA
Para
encerrar, ilustração! Neste mês de outubro, também é época do aniversário de
minha cidade, Vacaria, RS. A padroeira do Município também é uma representação
de Maria de origem portuguesa – Nossa Senhora da Oliveira. A imagem de
Oliveira, encontrada na região de Vacaria, e que hoje se encontra em um dos
símbolos do município – a Catedral de Nossa Senhora da Oliveira, no centro de
Vacaria – tem uma história similar à de Nossa Senhora de Aparecida, mas a
imagem de madeira não sofreu tanto quanto a imagem de barro.
Bem.
Segunda a lenda, a imagem de Nossa Senhora da Oliveira de Vacaria foi
encontrada em 8 de setembro de 1750, por um fazendeiro; ela estava intacta no
meio de um descampado que havia sido submetido a uma queimada controlada para
limpeza do solo para plantio. A imagem foi imediatamente levada para casa do
fazendeiro, e cultuada.
Outra
história lendária diz que um padre tentou, por três vezes, levar a imagem de
Nossa Senhora da Oliveira para uma igreja melhor, em outro município, por
julgar que ela merecia estar em lugar melhor que a capelinha simples em que se
encontrava – e mesmo sob protesto dos populares. Mas, todas as vezes que a
imagem era levada, ela sumia no meio dos pertences do tal padre, e reaparecia,
na capela simples. Na terceira tentativa, o padre concordou em deixar a imagem
na então vila de Vacaria.
De
todo modo, a Catedral de Nossa Senhora da Oliveira, construída em sua homenagem,
foi construída de 1901 a 1931. A Catedral, em estilo neogótico, é o principal
símbolo físico do município de Vacaria.
Eis
aqui, para começar, uma imagem de Nossa Senhora da Oliveira e da Catedral, por Carlos Rigotti, o maior pintor de Vacaria vivo,
e um dos mais preocupados em divulgar a cultura gaúcha e o município de Vacaria
em suas pinturas (e pedindo desculpas desde já se estou ferindo direitos
autorais)...
...e,
aqui, uma interpretação pessoal de Rafael Grasel para o momento em que a imagem
de Nossa Senhora da Oliveira de Vacaria foi encontrada. Parte de uma futura
série de ilustrações sobre a história da cidade de Vacaria. Mais detalhes serão
dados adiante.
Bom
feriado a todos, independente da religião e da idade.
Até
mais!
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