domingo, 11 de outubro de 2015

Livro: APARECIDA

Olá.
Enquanto escrevo, estamos na véspera do dia 12 de outubro. Para a maior parcela da população brasileira, é o Dia da Criança; para a outra maior parcela, é o Dia de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil. Para outra parcela, é o Dia do Descobrimento da América.
Foi por essa segunda celebração que fiz a escolha do que falar hoje: de livro.
Apesar do nome, é um livro de História, não de devoção. APARECIDA, de Rodrigo Alvarez, foge de padrões pré-estabelecidos, e, por isso, pode ser lido sem maiores receios.

APARECIDA – A Biografia da Santa que perdeu a cabeça, ficou negra, foi roubada, cobiçada pelos políticos e conquistou o Brasil foi lançado em setembro de 2014, pela Globo Livros. O autor, Rodrigo Alvarez, é repórter justamente da TV Globo – é o atual correspondente da emissora de Jerusalém. De formação católica, sua grande preocupação, em seu mais recente livro – ele também é autor de Haiti Depois do Inferno (2010, também pela Globo Livros) – foi contar a história de Nossa Senhora Aparecida de modo que leitores de quaisquer credos pudessem apreciar a leitura, independente das crenças, se as suas religiões permitem o culto de imagens ou não. O mote do livro é buscar compreender como uma simples imagem de Maria, mãe de Jesus Cristo, feita de barro, e que de início não tinha grandes atrativos, conseguiu se tornar um dos maiores símbolos do Brasil – ganhando até novela.
Basicamente, Nossa Senhora Aparecida é apenas uma representação da padroeira de Portugal, Nossa Senhora da Conceição, mas, devido a tudo o que passou ao longo de quase 300 anos de história, ganhou vida própria; tudo graças a supostos milagres atribuídas à presença da imagem que, posteriormente, ganhou um manto de veludo azul estampado, que lhe garantiu a icônica composição triangular; a coroa de ouro e joias, presente da Princesa Isabel (aquela que libertou os escravos em 1888); ganhou primeiro uma capelinha de beira de estrada; depois, uma igreja, construída a muito custo; e, posteriormente, uma basílica, a segunda maior do mundo – atrás apenas da Basílica de São Pedro, no Vaticano. A Basílica de Aparecida, em Aparecida do Norte, estado de São Paulo, aliás, é cópia da Basílica de Washington, capital dos Estados Unidos desde o seu projeto – mas ninguém parece se importar. Afinal, mais importante que a Basílica, que todos os anos atrai peregrinos de todo Brasil, que chegam às caravanas e praticamente lotam a cidade, é mesmo a imagem, que se tornou um fator de unidade ao Brasil, no tempo em que este país ainda nem era Brasil.
Todo católico nascido no Brasil já deve conhecer a história da “santa negra”: começou em 1717, quando três pescadores da região de Guaratinguetá, à margem do rio Paraíba do Sul, em São Paulo, encontraram, em uma pescaria com redes, primeiro, o corpo de uma santinha de barro, que se prendeu em suas redes de pesca; depois, eles conseguiram tirar a cabeça da santinha do rio. E, em seguida, como num milagre, a pesca, que naquele dia estava escassa, terminou farta. E aquela pescaria era providencial, visto que uma importante figura política do Brasil Colônia estava de passagem pela região, e foi exigido dos pescadores um lote de peixes para o preparo de um banquete. Esse milagre dos peixes foi o primeiro milagre atribuído àquela imagem miúda de barro de Nossa Senhora da Conceição. Como muitos dos relatos a respeito da santinha vem da tradição oral, portanto sem garantia de veracidade, só se podem fazer especulações a respeito de sua história. E grande parte do que a Igreja Católica prega a respeito de seus locais e objetos milagrosos, como se sabe, quase sempre não se sustentam na base dos documentos escritos, mas da tradição oral, das culturas menos ou nada letradas. Não é como hoje.
Vários milagres são atribuídos à imagem de barro que ganharia uma nova denominação: Nossa Senhora Aparecida. Um escravo cujas correntes arrebentaram diante da imagem enquanto rezava; uma menina cega que voltou a enxergar; um cavalo que prendeu uma pata em um degrau da capela quando um homem tentou invadi-la; um homem que salvou-se do ataque de uma onça pela intercessão de Aparecida; as velas da capela que se acenderam misteriosamente quando uma mulher rezava; e outros milagres atribuídos à imagem, negra provavelmente por conta do lodo do rio. Sabe-se lá por quanto tempo aquela imagem decapitada ficou no fundo do rio até ser encontrada: teria caído da carga de um mercador que passava por ali? Teria sido jogada fora depois de ser quebrada, segundo uma crendice da época?
Mas como aquela imagem de barro sem grandes atrativos se tornou o símbolo do Brasil, quando este ainda era colônia de Portugal? Como Aparecida conseguiu sobreviver, popular até hoje, às mudanças na política brasileira, à corrupção promovida às suas custas e, principalmente, a um atentado que a deixou em pedaços? Tudo isso, Alvarez procura responder, em uma linguagem jornalística, fácil de entender, com inserções de humor, e sem cair na hagiografia, na linguagem devocional, positivista. APARECIDA não é um livro de devoção: é um relato de como a história da imagem confundiu-se à do Brasil.
O livro é dividido em quatro partes. O ponto de partida da primeira parte, Atentado e Mistérios: o Renascimento, é o tal atentado: em 16 de maio de 1978, um jovem chamado Rogério Marcos invadiu a igreja de Aparecida, conseguiu pegar a imagem do cofre e a derrubou no chão, quebrando-a em pedaços. Depois disso, fugiu e, mais tarde, acabou sendo preso. Por que Rogério Marcos fez isso? Teria sido influenciado pelo Diabo, e não por um anjo, como afirmou? Seria apenas um doente mental? Teria sido influenciado pelos discursos das igrejas protestantes, que proíbem o culto a imagens? Quem sabe? O que se sabe é que o atentado deixou os fiéis muito preocupados; os padres de Aparecida, principalmente o cônego da época, Padre Izidro de Oliveira Santos, mais ainda. Pior ainda é que a cabeça da imagem praticamente reduziu-se a farelos, e, mesmo com as partes que conseguiram ser recuperadas, não seria possível reconstruí-la. Foi um desafio e tanto para a restauradora designada pelo Museu de Arte de São Paulo, Maria Helena Chartuni, que nem religiosa era.
Chartuni conseguiu cumprir a tarefa de juntar os cacos de Aparecida, mas, para tanto, teve de praticamente fazer uma nova Aparecida. A imagem que hoje vemos não é mais a que foi encontrada pelos três pescadores. Mais curioso é o material usado por Chartuni para refazer a imagem: cola Poxipol, importada da Argentina, hoje uma técnica até banal. Mas o maior desafio de Chartuni foi a intromissão constante de Padre Izidro, que não apenas amava aquela imagem como se fosse dele, mas chegou ao cúmulo de pegar a imagem restaurada, escondê-la em seu quarto, repintá-la em um tom mais claro – Chartuni, na restauração, deixou-a na cor escura próxima à original – e ainda tentou arranhar o olho da imagem, ferindo o dedo. Hoje, Nossa Senhora de Aparecida está não apenas diferente, como mais resistente, ao contrário de séculos anteriores, em que a cabeça era constantemente remendada, e mal remendada. E, hoje, nem é mais a imagem original que participa das procissões anuais, mas réplicas; a primeira se encontra guardada em local ainda mais seguro.
Só depois é que Alvarez, na segunda parte do livro, Identidade: Aparecida, retorna ao século XVIII, para recontar, ou tentar recontar, a história daquela imagem de Nossa Senhora da Conceição, desde que foi encontrada no rio pelos três pescadores. Ele chega a fazer especulações sobre a origem da imagem – o local onde foi confeccionada. Não consta maiores informações sobre a vida dos três pescadores – João Alves, Domingos Garcia e Felipe Pedroso. O que se sabe é que foi Pedroso quem começou o culto, ao levar a imagem para casa e montar-lhes um altar. É contada, inclusive, a história da tal autoridade política, dom Pedro Miguel de Almeida Portugal, governador sanguinário que, na realidade, estava de passagem pela região – mas, mesmo no diário de viagem de seu escrivão, não consta se o tal banquete, onde os peixes foram exigidos, foi realizado. Almeida Portugal estava a caminho da região de Minas Gerais, e, entre suas atribuições durante sua passagem pela região do estado de São Paulo, foi o julgamento de criminosos, com algum requinte de crueldade. E, já nessa época, era comum que os fiéis deixassem doações na capela que foi construída, à beira de uma estrada, e inaugurada em 1745 – e que houvesse gente que se aproveitasse de tanta devoção para faturar.
Apesar do crescimento do culto e da fama dos milagres de Nossa Senhora de Aparecida, o século XIX foi o mais árduo para a santa, conforme mostra a terceira parte do livro, Trevas e Redenção. A Igreja de Aparecida construída nessa época, hoje conhecida como Basílica Velha, foi construída a muito custo. É aí que se destaca uma figura peculiar: o padre Joaquim do Monte Carmelo. Para construir a Basílica Velha, dom Carmelo teve de enfrentar inclusive gente corrupta: devido ao regime de padroado da época do Império Brasileiro, os tesoureiros de Aparecida eram nomeados pelo governo – e, no geral, era gente que tinha por hábito roubar as doações em dinheiro dos fiéis dos cofres da igreja, e em benefício próprio. Contra essa administração, que deixava a vila de Aparecida às moscas, ergueu-se dom Carmelo, que teve de mover céus e terra para que Aparecida ganhasse uma igreja mais digna – a Basílica Velha foi concluída e inaugurada em 1888. E, apesar de tudo, acabou morrendo esquecido, com fama de encrenqueiro e sem mais poder rezar missas. Destaque ainda para a época da vinda dos padres alemães, que passaram a administrar a paróquia de Aparecida depois de uma árdua viagem, e que significou o fim do período de trevas para Aparecida – ao menos no campo religioso. No político, a imagem teve de aguentar a laicização forçada promovida pela Proclamação da República em 1889, e que durou até a ascensão de Getúlio Vargas ao poder, em 1930.
E chegamos à última parte do livro, A Rainha, os Papas e os Presidentes – Alvarez volta ao século XX, com uma pequena passagem pelo século XIX. Pois foi em 1868 que a Princesa Isabel, em agradecimento a uma graça alcançada – o nascimento de seu primeiro filho com o Conde d’Eu – deu à imagem a icônica coroa de ouro. E ela e o marido voltariam lá mais de uma vez, antes de irem embora do Brasil, em 1889. A grande redenção de Aparecida se deu depois que Getúlio Vargas ascendeu ao poder, em 1930 – apesar de não ser religioso, o presidente viu no culto a Aparecida uma oportunidade de conseguir uma melhor imagem junto ao povo. A santinha de barro ainda presenciou o período difícil da Revolução Constitucionalista de São Paulo (1932), quando a Basílica chegou a servir até de quartel-general aos revoltosos. E Aparecida ainda teve, em sua popularidade, uma ajudinha do Regime Militar (1964 – 1985): o governo de Humberto Castelo Branco financiou a viagem de Nossa Senhora Aparecida pelas capitais brasileiras. E, sendo símbolo do Brasil, o Regime Militar valorizou e divulgou o culto à imagem fortemente – enquanto, como se sabe, inimigos do governo eram presos e torturados. Foi também nessa época em que a Basílica Nova foi construída, depois de décadas – a inauguração foi em 1980, com a igreja ainda inconclusa. Tudo porque o Papa João Paulo II, em sua viagem ao Brasil, fez questão de passar por Aparecida e beijar a imagem. E não foi o único a fazer isso: os Papas Bento XVI e Francisco fizeram questão de ver a imagem com seus próprios olhos.
Alvarez passa por alto, e nem mesmo cita, os milagres atribuídos a Aparecida; sua preocupação é mesmo a história, longe do sagrado, perto do profano. Por isso, pode ser lido sem restrições. Não sem motivo – e podem ser apontados muitos motivos – APARECIDA foi best-seller entre 2014 e 2015.
Não será surpresa se o livro ganhar adaptação para cinema em breve – afinal, com as Organizações Globo por trás... De todo modo, para quem é apreciador de História, vale a pena ter na estante. Esperamos que a pessoa, a quem de repente você resolver presentear com esse livro, seja entusiasta de História, tanto quanto de Religião.
                                                                                                    
OUTRA NOSSA SENHORA
Para encerrar, ilustração! Neste mês de outubro, também é época do aniversário de minha cidade, Vacaria, RS. A padroeira do Município também é uma representação de Maria de origem portuguesa – Nossa Senhora da Oliveira. A imagem de Oliveira, encontrada na região de Vacaria, e que hoje se encontra em um dos símbolos do município – a Catedral de Nossa Senhora da Oliveira, no centro de Vacaria – tem uma história similar à de Nossa Senhora de Aparecida, mas a imagem de madeira não sofreu tanto quanto a imagem de barro.
Bem. Segunda a lenda, a imagem de Nossa Senhora da Oliveira de Vacaria foi encontrada em 8 de setembro de 1750, por um fazendeiro; ela estava intacta no meio de um descampado que havia sido submetido a uma queimada controlada para limpeza do solo para plantio. A imagem foi imediatamente levada para casa do fazendeiro, e cultuada.
Outra história lendária diz que um padre tentou, por três vezes, levar a imagem de Nossa Senhora da Oliveira para uma igreja melhor, em outro município, por julgar que ela merecia estar em lugar melhor que a capelinha simples em que se encontrava – e mesmo sob protesto dos populares. Mas, todas as vezes que a imagem era levada, ela sumia no meio dos pertences do tal padre, e reaparecia, na capela simples. Na terceira tentativa, o padre concordou em deixar a imagem na então vila de Vacaria.
De todo modo, a Catedral de Nossa Senhora da Oliveira, construída em sua homenagem, foi construída de 1901 a 1931. A Catedral, em estilo neogótico, é o principal símbolo físico do município de Vacaria.
Eis aqui, para começar, uma imagem de Nossa Senhora da Oliveira e da Catedral, por Carlos Rigotti, o maior pintor de Vacaria vivo, e um dos mais preocupados em divulgar a cultura gaúcha e o município de Vacaria em suas pinturas (e pedindo desculpas desde já se estou ferindo direitos autorais)...
...e, aqui, uma interpretação pessoal de Rafael Grasel para o momento em que a imagem de Nossa Senhora da Oliveira de Vacaria foi encontrada. Parte de uma futura série de ilustrações sobre a história da cidade de Vacaria. Mais detalhes serão dados adiante.
Bom feriado a todos, independente da religião e da idade.

Até mais!

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