sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Filme: CONCERTO CAMPESTRE

Olá.
Na última postagem, tratei do belíssimo romance Concerto Campestre, de Luiz Antonio de Assis Brasil. Um libreto de ópera sul-riograndense, de leitura rápida e proveitosa.
Pois hoje, vou tratar de seu produto derivado: CONCERTO CAMPESTRE – o filme. Tão belo quanto o livro – até certo ponto.
“Ah, filme brasileiro?!”, vocês podem estar pensando agora. Mas calma, leiam a resenha e assistam ao filme antes de julgarem.

ASPECTOS TÉCNICOS
Bem. CONCERTO CAMPESTRE, o livro, foi publicado em 1997; no ano seguinte, o cineasta Henrique de Freitas Lima, percebendo o potencial do romance para uma adaptação cinematográfica, inicia o projeto para a dita adaptação. O projeto correu de 1998 a 2003, e CONCERTO CAMPESTRE, o filme, chega aos cinemas em 2005. Duração de 100 minutos. Com direção de Henrique de Freitas Lima, com assistência de Nestor Monastério. O roteiro da adaptação é de José Mandel Fernandez, Pedro Zimmermann e Tabajara Ruas, com produção da Empresa Cinematográfica Pampeana.
CONCERTO CAMPESTRE é a segunda adaptação de um romance de Luiz Antonio de Assis Brasil para o cinema – a primeira foi A Paixão de Jacobina, de 2002, criticada adaptação de Fábio Barreto do romance Videiras de Cristal (1990). Vamos lembrar que Assis Brasil já foi vertido cinco vezes para o cinema: além de Videiras de Cristal e Concerto Campestre, tivemos as adaptações de Um Quarto de Légua em Quadro (1976), sob o nome Diário de Um Novo Mundo (direção de Paulo Nascimento, 2005); Manhã Transfigurada (1982) rendeu um filme homônimo (dirigido por Sérgio de Assis Brasil, 2008); e Ensaios Íntimos e Imperfeitos (2008) é adaptado para uma série de mini documentários dirigidos por Douglas Machado, em 2016, com atuação do próprio Assis Brasil. Esses documentários podem ser assistidos no website do autor (www.laab.com.br/).
Ah, já estava esquecendo: Luiz Antonio de Assis Brasil lança romance novo este ano! O Inverno e Depois chega agora, em setembro de 2016, pela L&PM.

VOLTANDO AO FILME...
CONCERTO CAMPESTRE tem, a seu favor: a boa reconstituição histórica (o filme se passa no ano de 1860, no contexto da era das charqueadas no Rio Grande do Sul), a estonteante cenografia e a enorme fidelidade ao romance. Freitas Lima e seus cúmplices tomaram apenas algumas liberdades e fizeram algumas mudanças em detalhes do enredo, mas a história do livro, em si, não apresenta grandes mudanças – os fatos principais da história, do começo ao fim, foram mantidos. Alguns acréscimos, de fatos e personagens novos, enriquecem o enredo.
Uma das preocupações de Freitas Lima e equipe foi manter o principal motor da trama, a música. As músicas de fundo se compõem de peças conhecidas e/ou pouco conhecidas de música clássica, interpretadas pela orquestra regida por Jean Potiguara; e, assim, o filme transmite bem a proposta de retratar a época em que se passa. Outra preocupação da equipe do filme foi expressar em imagens o tom bucólico do romance, passado quase todo em uma fazenda do interior do Rio Grande do Sul (então chamado Província de São Pedro). Isso fica explícito logo na cena de abertura, com a sequência mostrando o trabalho numa charqueada – vaqueiros manejando o gado nos campos e nos cercados, carneando bois, e escravos (na época, 1860, ainda imperava a escravidão nas atividades produtivas brasileiras) tratando a carne, colocando-a para secar ao sol, livrando-se dos restos dos bois, e o sangue das reses correndo através de canaletas até um poço próximo.
A charqueada pertence ao rude Major Eleutério de Fontes (Antonio Abujamra). Um dia, ele escuta, durante um passeio pela propriedade, dois índios missioneiros e nômades tocando música sob uma árvore; o Major gosta do que ouve, e contrata os índios para sua fazenda, para tocar para ele. O Major reside com sua família na fazenda charqueadora: entre os membros, a severa esposa, Dona Brígida (Araci Esteves, que, entre outros trabalhos, participou de outros dois filmes ambientados no Rio Grande do Sul, Anahy de las Misiones [direção de Sérgio Silva, 1997] e Netto Perde Sua Alma [direção de Tabajara Ruas e Beto Souza, 2001]), que acha o gosto do Major pela música uma perda de tempo, e a filha, Clara Victoria (Samara Felippo), petulante e com arroubos de rebeldia.
A notícia se espalha, e logo outros músicos chegam para trabalhar na estância, em boa parte vagabundos sem ter para onde ir. O Major confidencia com o Vigário da Vila de São Vicente (Miguel Ramos) a possibilidade de montar uma orquestra; e o Vigário recomenda o aventureiro Miguel, vulgo Maestro (Leonardo Vieira) para organizar os músicos em uma orquestra decente.
O sedutor Maestro aceita a incumbência da organização da orquestra, mas logo vê que as coisas não são tão simples como a princípio imaginava. O Major recomenda ao Maestro “severidade e virtude”, traduzidos como “trabalho e disciplina”. O estancieiro manda buscar, inclusive, instrumentos para a organização da orquestra, batizada de Orquestra Santa Cecília, por sugestão do Vigário.
O Maestro trabalha com afinco e alguma severidade para organizar o grupo de músicos de talento mediano (entre os músicos está o ator e violinista Hique Gomes, do espetáculo humorístico Tangos e Tragédias, inclusive protagonizando uma cena cômica!). Enquanto isso, seus passos são observados tanto pelo Major quanto pela mocinha Clara Victoria, que se interessa pela figura do mulato. Mas, este, a princípio, vive às turras com a moça – em uma cena, implica com Clara Victoria quando ela resolve arear panelas, junto com as criadas, perto do galpão onde os músicos ensaiam.
O Maestro, enquanto escreve pautas e dedilha seu bandolim nas horas de folga, e enquanto ensaia com a orquestra durante horas, observa o dia-a-dia da charqueada. Vê que, apesar de demonstrar um pendor para a modernidade com a sua orquestra, o Major mantém códigos morais conservadores para com as pessoas que o cercam: é severo com os escravos e familiares. Em uma cena, o Maestro usa como exemplo de castigo por indisciplina, aos músicos, um escravo que foi morto por empregados da fazenda durante uma tentativa de fuga do cativeiro. Em outra, o Major pune, amarrando ao tronco e dando-lhes chibatadas, um escravo rebelde, João Congo (Sirmar Antunes). Dona Brígida, por sua vez, vê na orquestra um sinal de loucura do marido, enquanto se preocupa com um bom casamento para Clara Victoria – tenta empurrar a filha para se casar com Silvestre Pimentel (Alexandre Paternost, que esteve no elenco de A Paixão de Jacobina como João Maurer, o marido da protagonista), o herdeiro de uma estância vizinha. Entretanto, a moça, embora obedeça a mãe, demonstra sinais de rebeldia, com suas respostas petulantes e não correspondendo à afeição do bonito, porém tedioso, Silvestre. Fica evidente, inclusive, que o Major e Dona Brígida não se dão bem um com o outro – eles partilham apenas dos códigos morais conservadores e algo tacanhos. Dona Brígida acaba ganhando ares de vilania.
A orquestra, já ensaiando na capela da fazenda, só começa a ir para a frente com a entrada do erudito Antônio de Lima, o Rossini (Roberto Birindelli), que se torna grande amigo e confidente do Maestro.
Mas não sem algum conflito: o Maestro tem um desentendimento com o Major porque resolve convocar o escravo João Congo para tocar os tambores, depois de presenciá-lo batucando durante o velório ao modo africano do escravo morto. A contragosto, o Major concorda em colocar o rebelde na orquestra. E, dentro de breve, a Orquestra Santa Cecília consegue encontrar a harmonia.
O Major convoca pessoas dos arredores para assistir a primeira apresentação da orquestra, que se torna um sucesso. E, logo, a Orquestra Santa Cecília sai em turnê pela Província. O Major até constrói um palco ao ar livre em um terreno da estância para futuras apresentações da Orquestra anta Cecília.
Enquanto isso, começa a se desenvolver a relação amorosa entre Clara Victoria e o Maestro. Aos poucos, o mulato se apaixona pela mocinha – o Maestro, a pedido da moça, ensina-a a ler e escrever. E daí, desenvolve-se o romance. Clara Victoria engravida do músico, e consegue esconder o fato o quanto pode, enquanto continua obrigada a se encontrar com Silvestre Pimentel, que está, sim, interessado na mocinha. Apenas Rossini, comparando a situação a uma ópera, sabe do romance proibido. Mas, logo, o Vigário acaba descobrindo, mediante confissão da mocinha, e tenta, nesse ínterim, adiantar o casamento entre Clara Victoria e Silvestre Pimentel, o que desperta desconfiança por parte do Major.
Entretanto, logo que os pais descobrem que a filha engravida, tudo se encaminha para a tragédia: Dona Brígida e o Major acreditam que o responsável pela gravidez foi Silvestre Pimentel, e o estancieiro tenta matar o rapaz a tiros, conseguindo apenas, entretanto, aleijá-lo. Clara Victoria acaba expulsa de casa, levada a viver em uma casa abandonada na beira de um arroio, dentro de uma mata, tendo apenas o capataz, Salvador (Pedro Machado) e a criada Sinhá Gonçalves (Naiara Harry) para se preocupar com seu destino. Na casa, Clara Victoria tem sua filha, que é levada para ser amamentada por uma mulher da vila.
O Major, que ainda proíbe que se fale da filha em casa, ainda despede a Orquestra Santa Cecília. O Maestro sofre muito, mesmo consolado por Rossini, e ainda é repreendido pelo Vigário. E o Major, sem sua orquestra, começa a enlouquecer, sempre indo ao palco construído, ouvindo orquestras imaginárias. Dona Brígida também começa a surtar com a loucura que toma conta de seu lar. Aí, a Orquestra Santa Cecília resolve retornar para a estância – a ideia do maestro é confrontar o Major e tentar convencê-lo a reconsiderar o castigo dado a Clara Victoria. Aí, um fato fantástico ocorre para o desfecho da trama, enquanto Guará (Lori Nelson), empregado de Silvestre Pimentel, se encaminha para a estância para vingar o sofrimento do patrão...
Talvez a parte mais fraca de todo o filme seja a sequência final – a cena da tempestade que cai sobre a fazenda, e do pé-de-vento que cai sobre o poço de sangue bovino, fazendo chover sangue sobre as pessoas que estão assistindo a apresentação final da orquestra. A tempestade, produzida de maneira digital, não ficou convincente, apesar dos esforços da equipe de efeitos especiais, coordenada por Paulo Crespo e Hugo Werle.
Mas o restante do filme vale a assistida. Houve esmero na reconstituição histórica. O enredo acabou enriquecido com os detalhes acrescentados em relação ao livro – por exemplo: o Maestro, no livro, não tem seu nome verdadeiro revelado: é só no filme que ele se chama Miguel. E o personagem João Congo não existe no livro – sua inclusão no roteiro foi uma boa aquisição, aliás, no livro, Assis Brasil não inclui escravos entre os personagens centrais. O contexto pelo qual o Maestro e Rossini se conhecem também é diferente entre o livro e o filme – o Maestro encontra Rossini durante uma viagem para Porto Alegre, no livro, enquanto que, no filme, Rossini se apresenta na estância, e aparece durante o primeiro ensaio da orquestra na capela. Do personagem Vigário, foi retirada dele sua característica de consultar constantemente o termômetro, mantendo seu caráter conservador. E nem Guará existe no livro – ele, no filme, dá um fim diferente do constante no livro a Silvestre Pimentel e ao Major... Oh: a tapera do boqueirão, para onde Clara Victoria é levada, é apresentada no início do livro como um local mal-assombrado, de onde escravos do Major vão colher uvas muito apreciadas; tal característica, a das “uvas do fantasma”, é retirada do roteiro do filme, e a tapera é apresentada bem depois. Ah: a turnê da Orquestra Santa Cecília pela província, se bem me lembro, também não consta no livro.
Mas, no mais, o filme é bem fiel ao livro. Mantém toda a estrutura de sua história, sem tirar demais, sem acrescentar demais. E as interpretações dos personagens são excelentes. O resultado ficou bem melhor que A Paixão de Jacobina, que pouco trouxe do romance original. Ressalta bem o bucolismo proposto do Assis Brasil, e é excelente para exibição em escolas, como retrato de uma época – seus 100 minutos passam voando. Algumas peças de música clássica que fazem parte da trilha sonora são reconhecíveis, principalmente para quem cresceu apreciando esse tipo de música através dos desenhos animados.
Ainda que o cinema nacional seja algo para se ver com reservas, CONCERTO CAMPESTRE vale uma sessão. Com os típicos elementos de uma novela. E já que temos atores globais no elenco, isso fica evidente.
Ah: o filme completo já pode ser encontrado no YouTube, até o momento em que escrevo, embora seja fácil acha-lo em DVD nas locadoras. Não duvido que também já esteja disponível nos sites de streaming na internet.

PARA ENCERRAR...
Um novo capítulo de minha HQ folhetinesca, O Açougueiro, que estou retomando com algum esforço. Os acontecimentos do fim de agosto tiraram muito de meu ânimo para trabalhar nestas páginas, sem falar que o tema original da história – os Crimes da Rua do Arvoredo da Porto Alegre de 1863 – já estão por demais distantes. Mas vou continuar, claro que vou. Se comecei, tenho de terminar. Aliás, tem tanta coisa que comecei e preciso terminar... só preciso do devido ânimo.
E, por hora, ficamos por aqui. Aguardem novidades.

Até mais!

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