Olá.
Na
última postagem, tratei do belíssimo romance Concerto Campestre, de Luiz Antonio de Assis Brasil. Um libreto de
ópera sul-riograndense, de leitura rápida e proveitosa.
Pois
hoje, vou tratar de seu produto derivado: CONCERTO CAMPESTRE – o filme. Tão
belo quanto o livro – até certo ponto.
“Ah,
filme brasileiro?!”, vocês podem estar pensando agora. Mas calma, leiam a
resenha e assistam ao filme antes de julgarem.
ASPECTOS TÉCNICOS
Bem.
CONCERTO CAMPESTRE, o livro, foi publicado em 1997; no ano seguinte, o cineasta
Henrique de Freitas Lima, percebendo o potencial do romance para uma adaptação
cinematográfica, inicia o projeto para a dita adaptação. O projeto correu de
1998 a 2003, e CONCERTO CAMPESTRE, o filme, chega aos cinemas em 2005. Duração
de 100 minutos. Com direção de Henrique de Freitas Lima, com assistência de
Nestor Monastério. O roteiro da adaptação é de José Mandel Fernandez, Pedro
Zimmermann e Tabajara Ruas, com produção da Empresa Cinematográfica Pampeana.
CONCERTO
CAMPESTRE é a segunda adaptação de um romance de Luiz Antonio de Assis Brasil
para o cinema – a primeira foi A Paixão
de Jacobina, de 2002, criticada adaptação de Fábio Barreto do romance Videiras de Cristal (1990). Vamos
lembrar que Assis Brasil já foi vertido cinco vezes para o cinema: além de Videiras de Cristal e Concerto Campestre, tivemos as
adaptações de Um Quarto de Légua em
Quadro (1976), sob o nome Diário de
Um Novo Mundo (direção de Paulo Nascimento, 2005); Manhã Transfigurada (1982) rendeu um filme homônimo (dirigido por
Sérgio de Assis Brasil, 2008); e Ensaios
Íntimos e Imperfeitos (2008) é adaptado para uma série de mini
documentários dirigidos por Douglas Machado, em 2016, com atuação do próprio
Assis Brasil. Esses documentários podem ser assistidos no website do autor (www.laab.com.br/).
Ah,
já estava esquecendo: Luiz Antonio de Assis Brasil lança romance novo este ano!
O Inverno e Depois chega agora, em
setembro de 2016, pela L&PM.
VOLTANDO AO FILME...
CONCERTO
CAMPESTRE tem, a seu favor: a boa reconstituição histórica (o filme se passa no
ano de 1860, no contexto da era das charqueadas no Rio Grande do Sul), a
estonteante cenografia e a enorme fidelidade ao romance. Freitas Lima e seus
cúmplices tomaram apenas algumas liberdades e fizeram algumas mudanças em
detalhes do enredo, mas a história do livro, em si, não apresenta grandes
mudanças – os fatos principais da história, do começo ao fim, foram mantidos.
Alguns acréscimos, de fatos e personagens novos, enriquecem o enredo.
Uma
das preocupações de Freitas Lima e equipe foi manter o principal motor da
trama, a música. As músicas de fundo se compõem de peças conhecidas e/ou pouco
conhecidas de música clássica, interpretadas pela orquestra regida por Jean
Potiguara; e, assim, o filme transmite bem a proposta de retratar a época em
que se passa. Outra preocupação da equipe do filme foi expressar em imagens o
tom bucólico do romance, passado quase todo em uma fazenda do interior do Rio
Grande do Sul (então chamado Província de São Pedro). Isso fica explícito logo
na cena de abertura, com a sequência mostrando o trabalho numa charqueada –
vaqueiros manejando o gado nos campos e nos cercados, carneando bois, e
escravos (na época, 1860, ainda imperava a escravidão nas atividades produtivas
brasileiras) tratando a carne, colocando-a para secar ao sol, livrando-se dos
restos dos bois, e o sangue das reses correndo através de canaletas até um poço
próximo.
A
charqueada pertence ao rude Major Eleutério de Fontes (Antonio Abujamra). Um
dia, ele escuta, durante um passeio pela propriedade, dois índios missioneiros
e nômades tocando música sob uma árvore; o Major gosta do que ouve, e contrata
os índios para sua fazenda, para tocar para ele. O Major reside com sua família
na fazenda charqueadora: entre os membros, a severa esposa, Dona Brígida (Araci
Esteves, que, entre outros trabalhos, participou de outros dois filmes
ambientados no Rio Grande do Sul, Anahy
de las Misiones [direção de Sérgio Silva, 1997] e Netto Perde Sua Alma [direção de Tabajara Ruas e Beto Souza, 2001]),
que acha o gosto do Major pela música uma perda de tempo, e a filha, Clara
Victoria (Samara Felippo), petulante e com arroubos de rebeldia.
A
notícia se espalha, e logo outros músicos chegam para trabalhar na estância, em
boa parte vagabundos sem ter para onde ir. O Major confidencia com o Vigário da
Vila de São Vicente (Miguel Ramos) a possibilidade de montar uma orquestra; e o
Vigário recomenda o aventureiro Miguel, vulgo Maestro (Leonardo Vieira) para
organizar os músicos em uma orquestra decente.
O
sedutor Maestro aceita a incumbência da organização da orquestra, mas logo vê
que as coisas não são tão simples como a princípio imaginava. O Major recomenda
ao Maestro “severidade e virtude”, traduzidos como “trabalho e disciplina”. O
estancieiro manda buscar, inclusive, instrumentos para a organização da
orquestra, batizada de Orquestra Santa Cecília, por sugestão do Vigário.
O
Maestro trabalha com afinco e alguma severidade para organizar o grupo de
músicos de talento mediano (entre os músicos está o ator e violinista Hique
Gomes, do espetáculo humorístico Tangos e
Tragédias, inclusive protagonizando uma cena cômica!). Enquanto isso, seus
passos são observados tanto pelo Major quanto pela mocinha Clara Victoria, que
se interessa pela figura do mulato. Mas, este, a princípio, vive às turras com
a moça – em uma cena, implica com Clara Victoria quando ela resolve arear
panelas, junto com as criadas, perto do galpão onde os músicos ensaiam.
O
Maestro, enquanto escreve pautas e dedilha seu bandolim nas horas de folga, e
enquanto ensaia com a orquestra durante horas, observa o dia-a-dia da
charqueada. Vê que, apesar de demonstrar um pendor para a modernidade com a sua
orquestra, o Major mantém códigos morais conservadores para com as pessoas que
o cercam: é severo com os escravos e familiares. Em uma cena, o Maestro usa
como exemplo de castigo por indisciplina, aos músicos, um escravo que foi morto
por empregados da fazenda durante uma tentativa de fuga do cativeiro. Em outra,
o Major pune, amarrando ao tronco e dando-lhes chibatadas, um escravo rebelde,
João Congo (Sirmar Antunes). Dona Brígida, por sua vez, vê na orquestra um
sinal de loucura do marido, enquanto se preocupa com um bom casamento para
Clara Victoria – tenta empurrar a filha para se casar com Silvestre Pimentel
(Alexandre Paternost, que esteve no elenco de A Paixão de Jacobina como João Maurer, o marido da protagonista), o
herdeiro de uma estância vizinha. Entretanto, a moça, embora obedeça a mãe,
demonstra sinais de rebeldia, com suas respostas petulantes e não
correspondendo à afeição do bonito, porém tedioso, Silvestre. Fica evidente,
inclusive, que o Major e Dona Brígida não se dão bem um com o outro – eles
partilham apenas dos códigos morais conservadores e algo tacanhos. Dona Brígida
acaba ganhando ares de vilania.
A
orquestra, já ensaiando na capela da fazenda, só começa a ir para a frente com
a entrada do erudito Antônio de Lima, o Rossini (Roberto Birindelli), que se
torna grande amigo e confidente do Maestro.
Mas
não sem algum conflito: o Maestro tem um desentendimento com o Major porque
resolve convocar o escravo João Congo para tocar os tambores, depois de
presenciá-lo batucando durante o velório ao modo africano do escravo morto. A
contragosto, o Major concorda em colocar o rebelde na orquestra. E, dentro de
breve, a Orquestra Santa Cecília consegue encontrar a harmonia.
O
Major convoca pessoas dos arredores para assistir a primeira apresentação da
orquestra, que se torna um sucesso. E, logo, a Orquestra Santa Cecília sai em
turnê pela Província. O Major até constrói um palco ao ar livre em um terreno
da estância para futuras apresentações da Orquestra anta Cecília.
Enquanto
isso, começa a se desenvolver a relação amorosa entre Clara Victoria e o
Maestro. Aos poucos, o mulato se apaixona pela mocinha – o Maestro, a pedido da
moça, ensina-a a ler e escrever. E daí, desenvolve-se o romance. Clara Victoria
engravida do músico, e consegue esconder o fato o quanto pode, enquanto
continua obrigada a se encontrar com Silvestre Pimentel, que está, sim,
interessado na mocinha. Apenas Rossini, comparando a situação a uma ópera, sabe
do romance proibido. Mas, logo, o Vigário acaba descobrindo, mediante confissão
da mocinha, e tenta, nesse ínterim, adiantar o casamento entre Clara Victoria e
Silvestre Pimentel, o que desperta desconfiança por parte do Major.
Entretanto,
logo que os pais descobrem que a filha engravida, tudo se encaminha para a
tragédia: Dona Brígida e o Major acreditam que o responsável pela gravidez foi
Silvestre Pimentel, e o estancieiro tenta matar o rapaz a tiros, conseguindo
apenas, entretanto, aleijá-lo. Clara Victoria acaba expulsa de casa, levada a
viver em uma casa abandonada na beira de um arroio, dentro de uma mata, tendo
apenas o capataz, Salvador (Pedro Machado) e a criada Sinhá Gonçalves (Naiara
Harry) para se preocupar com seu destino. Na casa, Clara Victoria tem sua
filha, que é levada para ser amamentada por uma mulher da vila.
O
Major, que ainda proíbe que se fale da filha em casa, ainda despede a Orquestra
Santa Cecília. O Maestro sofre muito, mesmo consolado por Rossini, e ainda é
repreendido pelo Vigário. E o Major, sem sua orquestra, começa a enlouquecer,
sempre indo ao palco construído, ouvindo orquestras imaginárias. Dona Brígida
também começa a surtar com a loucura que toma conta de seu lar. Aí, a Orquestra
Santa Cecília resolve retornar para a estância – a ideia do maestro é
confrontar o Major e tentar convencê-lo a reconsiderar o castigo dado a Clara
Victoria. Aí, um fato fantástico ocorre para o desfecho da trama, enquanto
Guará (Lori Nelson), empregado de Silvestre Pimentel, se encaminha para a
estância para vingar o sofrimento do patrão...
Talvez
a parte mais fraca de todo o filme seja a sequência final – a cena da
tempestade que cai sobre a fazenda, e do pé-de-vento que cai sobre o poço de
sangue bovino, fazendo chover sangue sobre as pessoas que estão assistindo a
apresentação final da orquestra. A tempestade, produzida de maneira digital,
não ficou convincente, apesar dos esforços da equipe de efeitos especiais,
coordenada por Paulo Crespo e Hugo Werle.
Mas
o restante do filme vale a assistida. Houve esmero na reconstituição histórica.
O enredo acabou enriquecido com os detalhes acrescentados em relação ao livro –
por exemplo: o Maestro, no livro, não tem seu nome verdadeiro revelado: é só no
filme que ele se chama Miguel. E o personagem João Congo não existe no livro –
sua inclusão no roteiro foi uma boa aquisição, aliás, no livro, Assis Brasil
não inclui escravos entre os personagens centrais. O contexto pelo qual o
Maestro e Rossini se conhecem também é diferente entre o livro e o filme – o
Maestro encontra Rossini durante uma viagem para Porto Alegre, no livro,
enquanto que, no filme, Rossini se apresenta na estância, e aparece durante o
primeiro ensaio da orquestra na capela. Do personagem Vigário, foi retirada
dele sua característica de consultar constantemente o termômetro, mantendo seu
caráter conservador. E nem Guará existe no livro – ele, no filme, dá um fim
diferente do constante no livro a Silvestre Pimentel e ao Major... Oh: a tapera
do boqueirão, para onde Clara Victoria é levada, é apresentada no início do
livro como um local mal-assombrado, de onde escravos do Major vão colher uvas
muito apreciadas; tal característica, a das “uvas do fantasma”, é retirada do
roteiro do filme, e a tapera é apresentada bem depois. Ah: a turnê da Orquestra
Santa Cecília pela província, se bem me lembro, também não consta no livro.
Mas,
no mais, o filme é bem fiel ao livro. Mantém toda a estrutura de sua história,
sem tirar demais, sem acrescentar demais. E as interpretações dos personagens
são excelentes. O resultado ficou bem melhor que A Paixão de Jacobina, que pouco trouxe do romance original.
Ressalta bem o bucolismo proposto do Assis Brasil, e é excelente para exibição
em escolas, como retrato de uma época – seus 100 minutos passam voando. Algumas
peças de música clássica que fazem parte da trilha sonora são reconhecíveis,
principalmente para quem cresceu apreciando esse tipo de música através dos
desenhos animados.
Ainda
que o cinema nacional seja algo para se ver com reservas, CONCERTO CAMPESTRE
vale uma sessão. Com os típicos elementos de uma novela. E já que temos atores
globais no elenco, isso fica evidente.
Ah:
o filme completo já pode ser encontrado no YouTube, até o momento em que
escrevo, embora seja fácil acha-lo em DVD nas locadoras. Não duvido que também
já esteja disponível nos sites de streaming na internet.
PARA ENCERRAR...
Um
novo capítulo de minha HQ folhetinesca, O
Açougueiro, que estou retomando com algum esforço. Os acontecimentos do fim
de agosto tiraram muito de meu ânimo para trabalhar nestas páginas, sem falar
que o tema original da história – os Crimes da Rua do Arvoredo da Porto Alegre
de 1863 – já estão por demais distantes. Mas vou continuar, claro que vou. Se
comecei, tenho de terminar. Aliás, tem tanta coisa que comecei e preciso
terminar... só preciso do devido ânimo.
E,
por hora, ficamos por aqui. Aguardem novidades.
Até
mais!
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