sexta-feira, 25 de novembro de 2016

AMANA AO DEUS DARÁ - Reencontro com o Brasil

Olá.
Na semana que passou, eu, por um acaso do destino, tive um reencontro com o passado. Um detalhe de um passado que outrora foi feliz. Ao mesmo tempo, foi um encontro com o Brasil – no seu aspecto exótico, de belezas naturais e arquitetônicas, de gente simpática... na forma de desenhos. Já explico.
Hoje, vou falar de graphic novel brasileira. Faz anos que li este álbum – e foi no ano em que ele foi lançado. Faz mais de dez anos que ele foi lançado, tido pela crítica como revolucionário, mas hoje, mal se ouve falar de sua autora. E, há semanas atrás, por acaso, consegui adquirir, em uma promoção, um exemplar de AMANA AO DEUS DARÁ, de Edna Lopes, uma obra prima do quadrinho nacional, injustiçadamente prejudicada pela visão tacanha dos outros artistas brasileiros. Já volto a esta parte.

Bem: AMANA AO DEUS DARÁ foi publicado em 2004, pela editora Casa da Palavra, do Rio de Janeiro. Sua autora, responsável pelo roteiro e pela arte, é Edna Lopes, e AMANA foi seu único álbum impresso lançado até hoje. Edna Lopes continua atuando discretamente na área dos quadrinhos, ilustrações e composições musicais.
Well: na última página de AMANA, há uma breve biografia de Edna Lopes, e detalhes iniciais sobre a elaboração do álbum:
“Edna Márcia Lopes nasceu em 23 de setembro de 1962 em Curitiba. Filha de um paulistano e uma gaúcha de Alegrete, aos quatro anos de idade foi para Porto Alegre. Vivia com seus dois irmãos no bairro de Canoas quando, aos 5 anos, uma enchente forçou a saída de sua família da capital gaúcha direto para São Paulo. Nessa cidade cresceu, participou de movimentos políticos, estudou jornalismo e morou até os 27 anos quando, casando-se com um carioca, foi para o Rio de Janeiro, onde reside até hoje. Realizou vários trabalhos de arte para cd’s, livros, revistas e sites. Agora nos apresenta Amana, uma história original que surgiu toda pronta enquanto preparava sua bebida preferida, o café.”
O marido carioca de Edna Lopes é uma figura pública bastante conhecida: ninguém menos que o cantor e compositor Eduardo “Ed” Motta, com quem é casada desde 1990. E ambos possuem trabalhos conjuntos e/ou relacionados: a partir do álbum Entre e Ouça (1992), Edna Lopes cria as capas dos discos lançados pelo marido; e, em 2010, os dois assinaram juntos as letras de 11 das 12 faixas do CD Piquenique.
O trabalho atual de Edna Lopes é discreto, algumas HQs curtas lançadas em revistas e ilustrações; em 2013, ela iniciou a publicação de uma webcomic de ficção científica, As Aventuras de Qüeby e Saepius. Mas nenhum plano de lançar um novo álbum. Esses trabalhos podem ser conferidos no site http://ednalopes.wixsite.com/ednalopes.
Edna Lopes conta, em uma matéria publicada no jornal Folha de São Paulo em 2004 (http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2704200412.htm) que, antes de resolver lançar AMANA como uma história em quadrinhos, ela não sentia muita atração por esse gênero artístico: a autora, com queda pelas artes plásticas e que preferia literatura, Machado de Assis, etc., achava os quadrinhos “meio bobos”. Foi o marido Ed Motta, que também é colecionador inveterado de quadrinhos, principalmente europeus e do underground norte-americano, que a converteu: ela se encantou pelo álbum S.O.S. Meteoros, de Edgar Pierre Jacobs, por seus aspectos técnicos e narrativos, e assim, sob influência da nata das HQ europeias e norte-americanas, Edna Lopes resolveu produzir AMANA como HQ. Outra influência para o trabalho foi o livro Meninas da Noite, de Gilberto Dimenstein, que trata sobre o tráfico de garotas para a prostituição – e ela incluiu no álbum, que, inicialmente, seria uma história de terror, e que, no fim, se tornou um drama com toques humorísticos.
Na época do lançamento, AMANA foi tido como um álbum revolucionário: a crítica apontava que o álbum foi a primeira graphic novel brasileira feita por uma mulher – e, na época, ainda era relativamente pequena a presença de mulheres no mundo das HQ brasileiras, como um todo, uma tendência que só experimentaria crescimento no decorrer da década de 2000, quando nomes como Samanta Flôor, Chiquinha e Mauren Veras começaram a se arriscar e a despontar no humor gráfico.
Mas, infelizmente, o sucesso do álbum foi prejudicado pelo mau momento vivido pelas HQ brasileiras, visto que o mercado mainstream (quadrinhos brasileiros publicados por editoras maiores e com maior distribuição em bancas) estava em declínio, e ainda não existia o financiamento coletivo (crowdfunding) na internet. A década de 2000 era difícil para qualquer brasileiro se arriscar a lançar quadrinhos, seja álbum ou independente nos fanzines – a concorrência com os comics e os mangás era desleal, e muito se discutia a respeito de formas de levar mais produções nacionais às bancas, mesmo sem haver uma forma de incentivar o leitor brasileiro a apreciar material brasileiro. Acreditem, sei como é, presenciei esse momento enquanto estudava em Santa Maria, RS, e era membro ativo do Núcleo de Quadrinhistas de Santa Maria – Quadrinhos S.A.. Ouvia muito os discursos do Byrata, criador do inesquecível Xirú Lautério e então membro pró-ativo, sobre a necessidade de incentivo à indústria nacional de quadrinhos e...
Bem. Foi por intermédio do Quadrinhos S.A. que li pela primeira vez AMANA – o Núcleo teve, disponível na gibiteca de seu escritório, um exemplar do álbum de Edna Lopes. Foi assim que tive contato com a HQ – e, hoje, cerca de 12 anos depois, tenho um exemplar de AMANA para chamar de meu.
Well. AMANA traz também muitos elementos autobiográficos – a experiência de vida de Edna Lopes transparece em vários elementos do álbum. Através da viagem de uma garota em busca de suas origens, Edna Lopes oferece um panorama do Brasil, as diferenças notáveis na cultura de seus estados, no falar e no pensar de sua gente... Tudo aliado a reflexões filosóficas, suspense e um pouco de surrealismo.
A estrutura narrativa de AMANA lembra a de um filme – uma road movie que começa em São Paulo, capital, segue até o Rio de Janeiro, sobe até Salvador, na Bahia, e vai até a Amazônia. Ainda há a presença de uma personagem gaúcha, só para não dizerem que a Região Sul foi esquecida. O roteiro foi construído de forma mais ou menos primorosa, com muitas cenas dialogadas, mudanças constantes de ângulo, e apenas alguns detalhes que o leitor precisa supor a partir das imagens apresentadas, dando um tom “cerebral” à narrativa. Ainda há muitas referências musicais e literárias. Mas o defeito maior reside no álbum não desenvolver suficientemente as tramas interligadas – a história é concentrada em Amana, a personagem principal; os personagens secundários não podem ficar muito tempo convivendo com ela, visto que a personagem precisa “ir embora” logo depois, sem mais tempo para desenvolver laços mais fortes entre eles. A preocupação maior de Edna Lopes foi ressaltar a diferença de costumes e linguagem de diversas regiões brasileiras – apesar da grande circulação de gente entre as regiões brasileiras, as diferenças linguísticas e culturais são notáveis.
Edna Lopes investiu em uma quadrinização moderna, cheia de quadros pequenos inseridos em grandes detalhes, grandes quadros fragmentados em diferentes cenas, planos que iniciam a partir de pequenos detalhes, enquadramentos que valorizam enormemente os cenários, cenas noturnas que permitem apenas visualizar os contornos das personagens na meia-luz, sobre fundo escuro, ao estilo Sin City de Frank Miller... tudo em um traço bem simples, realista estilizado, caindo para o mangá combinado ao europeu, com pitadas de sensualidade e um levíssimo erotismo (não sei se vocês estão conseguindo me entender...), como se Edna Lopes tivesse apenas desenhado os contornos dos personagens, em papel transparente, sobre referências fotográficas, em linhas grossas que não comprometem. O desenho é quase infantil, com economia de linhas e de detalhes, em linha-clara, sem hachuras, mas com grande força de expressão. Ainda mais com as inserções de surrealismo, as cenas de sonho da personagem, onde aparecem índios, cartas de baralho... As transições entre as cenas também são incrivelmente bem trabalhadas. O letreiramento usa uma fonte incomum para os quadrinhos, de maiúsculas e minúsculas (se aplicando, inclusive, nas onomatopeias), o que acrescenta um toque pessoal ao trabalho. AMANA, como um todo, é um trabalho eminentemente pessoal de Edna Lopes, e praticamente ajudou a firmar o olhar feminino que faltava às HQ brasileiras.
O álbum de 120 páginas (sem contar capa) é impresso em papel tipo pergaminho, com um levíssimo tom pardo; e é quase todo em preto e branco, apenas com algumas inserções em vermelho. Quer dizer, preto e branco, em termos relativos: na verdade, a impressão ficou foi em tinta marrom-escura, cor de café (lembram que café é a bebida preferida da autora?), com uma pequena variação para o marrom-claro, sem, contudo, prejudicar a qualidade do álbum. Assim, AMANA é impresso em pardo, marrom e vermelho. Ponto.
Bueno. A história.
Ela inicia em São Paulo, no ano de 1981. Na sequência inicial, quase sem palavras, uma garota em fuga – a personagem principal – tromba com um pastor evangélico na Estação da Luz, à noite. Enfezado por sua Bíblia ter se estragado ao cair em uma poça d’água, o pastor espanta a garota, impedindo até a ação de um assaltante que espreitava a menina. A seguir, a garota compra uma passagem de ônibus e, entre sonhos com uma velha gritando contra ela, a menina sai de São Paulo e chega ao Rio de Janeiro. Ela vai a uma casa à procura de alguém, mas, não encontrando, ela ruma para a praia de Ipanema e adormece na areia.
Cena seguinte, já começando a parte dialogada: dois jovens estão na praia, quando avistam a garota adormecida na areia, e um policial prestes a prendê-la sob suspeita de ser uma pivete de rua. Um dos jovens, a garota Simone, resolve auxiliar: como ela está de biquíni fio-dental, ela seduz o policial para convencê-lo a deixar a menina em paz. Mas, constatando que a menina está febril, e suspeitando que ela possa estar levando “bagulho” consigo, Simone decide levá-la para sua casa, com a ajuda de seu acompanhante, Carlos, sempre em atitude de “por que fui me meter nesse assunto?”, sempre tentando tirar o corpo fora das situações.
Na casa de Simone, auxiliada por ela e por uma tia mal-humorada, a garota melhora da febre, e, para as mulheres da casa – na conta ainda entra a mãe de Simone, que chega logo depois – começa a contar sua história, suas motivações:
Seu nome é Amana. Dezoito anos. Ao que tudo indica, mestiça de branco com índia. Criada pela avó paulista, uma senhora mal-humorada e preconceituosa, Amana nunca conheceu os pais, até então acreditava que nascera na Bahia, e se sentia, desde pequena, deslocada, parecia não pertencer a lugar algum. A avó sempre se recusou a falar de sua origem – e ela sempre aparece nos sonhos da menina, xingando-a por ser mestiça de branco com índia, por isso, “ter sangue fraco”. Sua vida mudou quando resolveu ler Os Sertões, de Euclides da Cunha – e decidiu descobrir por si mesma suas origens, mas leva um choque, ao analisar seus documentos, que, na verdade, nascera no Amazonas. E decide fugir de casa, rumo ao norte, a fim de descobrir sua verdadeira origem.
Ao longo da trama, algumas pistas ocultas são oferecidas ao leitor, permitindo tirar algumas sérias conclusões a respeito do passado de Amana.
Bem. Ao longo de sua trajetória, Amana vai conhecendo diversos aspectos de um país de dimensões continentais. Conhece gente simpática e acolhedora, porém, mais adiante, acaba topando com pessoas hostis.
Bem, prosseguimos: acolhida na casa de Simone, Amana passa alguns dias no Rio de Janeiro, até conseguir uma condução para a Bahia. Nesse meio-tempo, Simone leva Amana para conhecer a “cidade maravilhosa”; Amana conhece os amigos de Simone, pessoas estudadas e cheias de teorias de mesa de bar. Vai a festas, em casa de “gente rica”, em bares e gafieiras. Rebate comentários preconceituosos a respeito do povo brasileiro e sua relação com o trabalho; ouve uma interessante teoria sobre a “inveja masculina do útero”, um contraponto à conhecida teoria da “inveja feminina do pênis”; conhece um homem, o viril Nei, que promete ajudar Amana depois que a salva de um assalto – e, no segundo encontro, na gafieira, o homem e a garota tem um breve envolvimento amoroso. No entanto, Amana, com algum pesar, tem de deixar essa gente simpática para trás, sem ter como retribuir os favores.
De carona com um amigo de Nei, Amana segue para Salvador, na Bahia, onde é acolhida por pessoas simpáticas – Clemente e sua esposa Dora. Ela até auxilia o pessoal no cuidado com crianças carentes, e conhece um francês, colecionador de discos brasileiros. E tem conversas com Clemente a respeito de religião, crenças.
De carona com amigos de Clemente, Amana passa pelo sertão nordestino, e chega até o Maranhão, na entrada da Floresta Amazônica – e, ali, já fica à própria sorte, sem tem ideia para onde ir, nem a quem pedir ajuda. Até que consegue uma informação a respeito de um trabalho de empregada em uma cidade no meio da floresta – Edna Lopes não informa onde, exatamente. Vai de avião, em companhia de duas outras jovens.
Mas acaba descobrindo que foi enganada: ela acaba coagida, na verdade, para trabalhar como prostituta, junto com meninas bem mais jovens. Amana chega a protestar, mas acaba apanhando – e é aprisionada em uma cabana.
Sua companheira de cativeiro na cabana é uma menina loira, Hortência. Gaúcha de Alegrete, viera à Amazônia junto com o pai, um pesquisador da flora da região – mas acaba se perdendo na floresta, capturada por bandoleiros e coagida a trabalhar como prostituta, sendo a mais requisitada por ter cabelo claro. Por conta disso, Hortência, “a louca”, é uma menina revoltada contra tudo – incluindo o pai – e até capaz de matar. A fala gaúcha meio estereotipada contribui para tornar Hortência a personagem menos carismática do álbum.
Hortência já planejou a fuga, ajudada por um rapaz que faz as vezes de seu amante, e tem em Amana sua aliada. Entretanto, Amana acaba despertando afeição pelas outras meninas do cativeiro, inclusive por Vanusa, menina de dez anos que amadureceu precocemente, e Iraci, uma índia com bebê de colo.
Chega a noite da fuga. Conforme o planejado, Amana e Hortência são as únicas que não bebem com as outras. Porém, Iraci, que se dispôs a fugir com elas, acaba bebendo, e, impedida de fugir com as garotas, dá a Amana o filho pequeno para levar com ela – e isso faz com que Amana tire uma terrível conclusão a respeito de seu passado.
As próximas horas são de suspense e acontecimentos trágicos, na escuridão noturna, quando o rapaz tenta estuprar Hortência, e acaba fazendo com que Amana e “a louca” tomem atitudes extremas; até o final meio feliz, que aponta para uma esperança de futuro.
Entretanto, os leitores podem sair frustrados da experiência: o final em aberto, como se a história tivesse sido bruscamente interrompida, não deixa claro qual foi o destino da protagonista, nem o do bebê, nem dos outros personagens. Edna Lopes teria em mente fazer uma continuação de AMANA? Bem que poderia ser assim... AMANA merece uma continuação.
E merece, ainda, uma adaptação para o cinema. Afinal, a estrutura narrativa de AMANA se assemelha à de um filme, com trilha sonora definida e tudo. Daria um belo “filme de arte” brasileiro... se os cineastas e produtores nacionais não tivessem uma visão tão tacanha a respeito dos quadrinhos brasileiros. Vocês entendem, né?
Talvez porque AMANA AO DEUS DARÁ tivesse sido lançado em momento pouco oportuno, ou porque o público simplesmente não estava preparado... Nem mesmo um prêmio Ângelo Agostini, nem um HQ Mix lhe foi oferecido. Mas bem que merecia. De todo modo, AMANA já garantiu seu lugar na história do quadrinho nacional: a primeira graphic novel brasileira feita por uma mulher.
Uma lida vale muito a pena. Mulheres fazendo quadrinhos no Brasil, já temos mais representantes, e fazendo trabalhos respeitáveis. Mas bem que Edna Lopes poderia retornar logo à cena. Ela está fazendo muita falta. E, aparentemente, Qüeby e Saepius também já chegou a seu final. Não vai ter álbum novo?

PARA ENCERRAR...
...já que falamos de Quadrinhos S.A., vou colocar aqui algumas tiras do meu personagem regionalista, o Teixeirão. Lembro que o já citado Byrata chegou a resenhar AMANA em uma edição da Quadrante X, a revista oficial do Núcleo. Se não me engano, foi na edição # 4. Foi na Quadrante X que o Teixeirão estreou e teve suas primeiras tiras publicadas. Logo, não há deslocamento.
Estas aqui são as tiras do mais recente – e ainda inconcluso – arco de histórias do Teixeirão, A Irmandade do Chimarrão. Está complicado chegar ao final... Já falei das dificuldades para tal, não?
Leiam as tiras mais recentes em https://naestanciadoteixeirao.blogspot.com.br/.
Ah, e não se esqueçam: no dia 3 de outubro, o Quadrinhos S.A. lançará mais uma edição da Quadrante X – o 15º número – no evento Comic Con Experience (CCXP), em São Paulo, de 1o. a 4 de dezembro. Fica o aviso.
Saibam mais a respeito no blog do Quadrinhos S.A. (https://quadrinhossa.blogspot.com.br/).

Até mais!

Um comentário:

Fabrício disse...

Rafael. Também li o mesmo exemplar da Amana, que conhecia no Quadrinhos S.A. Umas das melhores HQ's que já li até hoje. Ainda acho que HQ's são muito mais que histórias de super-heróis e por isso a Nona arte é desvalorizada como um meio de contar boas histórias.
Com o crescimento especialmente da grafic-novels dentro dos quadrinhos com um todo, a tendência é que sua relevância continue crescendo.
Ao ler a saga da personagem tive uma experiência literária (quadrinhística) parecida com ao ler Day Tripper.
Sou fã das tuas postagens aqui no Estúdio Rafalipe!