Olá.
Na
última postagem, eu falei a respeito do dramaturgo gaúcho José Joaquim de
Campos Leão – ou melhor, Jozé Joaqim de Qampos Leão Qorpo-Santo (1829 – 1883),
que só foi reconhecido como dramaturgo, de fato, após sua morte. Para falar a
respeito do criador do Teatro do Absurdo brasileiro, tomei por base um trabalho
de compilação publicado em 1969, feita pelo crítico Guilhermino César.
Pois,
por acaso, encontrei o segundo grande trabalho de análise da obra de
Qorpo-Santo – publicado ainda no calor da hora, ou melhor, de quando a obra de
Qorpo-Santo foi redescoberta, nos anos 1960 – 1970, encenada pela primeira vez,
amplamente estudada.
Este,
certamente, é o mais completo estudo da obra do “dramaturgo”, “poeta”,
“enciclopedista”. Com vocês, OS HOMENS PRECÁRIOS, de Flávio Aguiar.
OS
HOMENS PRECÁRIOS – INOVAÇÃO E CONVENÇÃO NA DRAMATURGIA DE QORPO-SANTO apareceu,
pela primeira vez, como uma Tese de Mestrado em Teoria Literária, defendida
pelo autor, Flávio Wolf de Aguiar (nascido em Porto Alegre, RS, em 1947), na
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
(USP), em 1974. No ano seguinte, 1975, o trabalho foi publicado na forma de
livro, pela extinta editora A Nação, de Porto Alegre, em co-edição com o
Instituto Estadual do Livro. Hoje, o livro se encontra esgotado, não tendo
ganhado nova edição por nenhuma outra editora – hoje o livro só pode ser
encontrado em alguma “poeirenta” biblioteca, ou em algum sebo.
O
que é uma pena, porque o livro não é apenas a mais completa dissecção, em sua
época, das peças de Qorpo-Santo; também é um modelo de análise literária –
claro, apesar de sua linguagem técnica, de crítica literária, e de trechos
pouco compreensíveis a quem não possui vivência acadêmica, como é o caso de 70%
de meus 17 leitores. Estarei certo ou errado com esses números?
SOBRE O AUTOR
Bom:
Flávio Aguiar ainda se encontra em atividade, como professor, jornalista, escritor
e tradutor. Atualmente, mora em Berlim, na Alemanha, onde é correspondente de
publicações brasileiras, impressas ou na internet. O porto-alegrense é graduado
em Letras (1970) pela USP, detendo ainda os títulos de Mestre (1974) e Doutor
(1979) pela mesma faculdade. Sua tese de doutorado, A Comédia Nacional no Teatro de José de Alencar, também foi
publicada em livro, pela editora Ática, em 1984, e por ela ganhou o primeiro
dos quatro prêmios Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, que recebeu até hoje.
Em
1982, Aguiar cumpriu programa de Pós-Doutorado na Universidade de Montreal, no
Canadá. Foi professor convidado e conferencista em universidades do Brasil,
Uruguai, Argentina, Canadá, Alemanha, Costa do Marfim e Cuba. Foi professor de
Literatura Brasileira da USP entre 1973 e 2006, tendo orientado mais de
quarenta teses e dissertações de Mestrado e Doutorado – atualmente, é professor
assistente doutor aposentado pela mesma universidade. Foi editor de cultura do
jornal Movimento durante o período do
Regime Militar.
Casou
duas vezes. Do primeiro casamento, com Iole de Freitas Druck, teve três filhas,
duas netas e dois netos. Sua atual cônjuge é a professora Zinka Ziebell, da
Universidade Livre de Berlim.
Flávio
Aguiar tem mais de trinta livros publicados, como autor, co-autor e
organizador, entre livros de crítica literária, ficção e poesia. Também foi
colaborador em diversas antologias de literatura. Um de seus primeiros livros
foi Sol, poemas. Além de OS HOMENS
PRECÁRIOS e de A Comédia Nacional no
Teatro José de Alencar, se destacam, na obra do autor: A Palavra no Purgatório: Literatura e Cultura nos Anos 70 (Boitempo,
1998); Anita (Boitempo, 1999,
romance, vencedor do Prêmio Jabuti em 2000); Antônio Cândido: Pensamento e Militância (Humanitas / Fundação
Perseu Abramo, 1999); Colar de Vidro e
Outros Poemas (Corag / IEL, 2002, finalista do Prêmio Açorianos as
Secretaria Municipal de Cultura de Porto Alegre); e A Bíblia Segundo Beliel: Da Criação ao Fim do Mundo – Como Tudo de Fato
Aconteceu e Vai Acontecer (Boitempo, 2012). Como organizador, foi
responsável, entre outros trabalhos, pela compilação das peças de Nelson
Rodrigues para a Editora Nova Fronteira, lançada em 2004.
RETORNO À PORTO ALEGRE SURREALISTA
Well,
voltemos agora a analisar OS HOMENS PRECÁRIOS, que apareceu ainda durante a
onda causada pela redescoberta dos textos de Qorpo-Santo. Na época, eram
conhecidos seis dos (prováveis) nove volumes da principal obra de José Joaquim
de Campos Leão Qorpo-Santo, a Ensiqlopèdia,
ou Seis Mezes de Huma Enfermidade, publicada e editada pelo próprio
Qorpo-Santo em 1877, que compilava todas as outras. Quando Guilhermino César
organizou a primeira compilação das comédias do “maníaco escritor”, em 1969, só
haviam sido localizados três volumes – os fascículos II, IV e VII. Mais ou
menos na década de 1970, foram localizados mais três – os volumes I, VIII e IX
– em poder da família Assis Brasil. Nos dias atuais, os fac-símiles desses seis
volumes se encontram em poder da Biblioteca Central da PUCRS, de Porto Alegre,
que disponibilizou a versão digitalizada desses textos na internet.
A Ensiqlopèdia era uma mistura caótica de
poemas, textos de crítica, artigos do jornal A Justiça (que Qorpo-Santo editou em Porto Alegre e Alegrete entre
1868 e 1871), pensamentos, receitas culinárias... e, claro as comédias. Do
conjunto até hoje resgatado pelo autor, se conhecem 16 comédias completas e uma
incompleta.
Até
a redescoberta das comédias de Qorpo-Santo, e de suas primeiras representações
em 1966 – que foram sucesso de público e crítica (para saber mais, consultem a
postagem anterior) – a obra do “maníaco escritor”, que em vida fora considerado
louco, teve seus bens apreendidos, e diversas pessoas de suas relações (na
visão dele) conspirando contra o então professor, jornalista, comerciante e
escritor nas horas vagas, estava em “hibernação”. Qorpo-Santo era lembrado, até
meados de 1950, apenas como uma figura pitoresca de Porto Alegre (sabiam que,
segundo a lenda, Qorpo-Santo teria sido o pioneiro das fachadas luminosas de
Porto Alegre? Ele, quando instalou a sua própria tipografia, em 1877, teria
recortado na madeira de um caixote as palavras “Tipographia Qorpo-Santo”,
instalado o caixote em cima da porta e colocado velas acesas dentro do mesmo
para que a escrita brilhasse no escuro); exemplares da Ensiqlopèdia ficaram guardadas em coleções de bibliófilos e
colecionadores de livros antigos, mais como curiosidade que necessidade de
recuperação histórica; sua obra foi esnobada pelos membros do Movimento
Modernista de 1922 – apesar de estar comprovado que tanto seus poemas como
peças teatrais foram pioneiros em diversos aspectos. Qorpo-Santo teria, com
suas peças repletas de nonsense e histeria, se adiantado aos europeus Alfred
Jarry (da peça Ubu-Rei), Eugène
Ionesco (de A Cantora Careca) e
Samuel Beckett (de Esperando Godot),
os “criadores” do Teatro do Absurdo na Europa.
Qorpo-Santo
foi o pioneiro em usar situações burlescas, palavras sem nexo e ações sem sentido
para criticar a sociedade de seu tempo. Motivos, claro, não lhe faltaram. Só
perdeu a primazia para os europeus porque suas peças nunca foram encenadas em
vida. No Brasil do século XIX, ainda imperavam o teatro romântico e o teatro
realista, ambos de intenções moralizantes.
Qorpo-Santo
teve sua maneira pessoal de criticar a burocracia estatal, a ineficiência do
serviço público da época do Império, as relações familiares, os motivos para o
adultério e para procurar prostitutas, as relações entre marido e mulher, a
passagem do tempo... Ainda foi o pioneiro no tratamento da homossexualidade
masculina no teatro brasileiro, ainda que em um breve diálogo e com final
infeliz (na peça A Separação dos Dois
Esposos).
Bueno.
Eis como Flávio Aguiar, na introdução do texto, justifica o título de sua tese:
“Qorpo-Santo e sua obra: sobretudo, pessoa e coisa
enigmáticas, a desvendar segredos solitários.
Fizeram-se, ambos, testemunho extremo da precariedade
congênita em que se cria arte (cultura) numa sociedade subdesenvolvida,
entregue ao disfarçado desespero da própria pobreza e à contemplação
alucinatória das ‘maravilhas’ que lhe chegam do ‘Mundo’, seja do Velho, seja do
Novo, que a si mesma ainda vê com distanciado espanto. Pensando, basicamente,
nessa precariedade, foi que chamei este trabalho de ‘Os Homens Precários’. E
tentei mostrar como Qorpo-santo, jogando com as convenções da pobreza e do
maravilhamento, conseguiu transpor para o papel a possibilidade de que se
compreenda, de novos ângulos, a nossa condição de cidadãos do precário
‘terceiro mundo’ cultural (e econômico).” (p. 15 – 16)
Em
sua dissecção das peças e das situações sem nexo que Qorpo-Santo colocou no
papel, Flávio Aguiar consegue encontrar o devido sentido, o devido propósito
das ideias do “maníaco escritor”. É claro, ele contempla quase todas as peças
de Qorpo-Santo – inclusive as que não foram incluídas na antologia de
Guilhermino César. Ah, em tempo: Guilhermino César é responsável pelo prefácio
de OS HOMENS PRECÁRIOS; e Maria Helena Martins, pelo texto de orelha.
Bão:
OS HOMENS PRECÁRIOS se divide em quatro partes, sendo as duas primeiras
divididas em capítulos – e todas abrem com um trecho de um soneto de Heloísa
Jahn, em transcrição crescente (na primeira parte, a primeira estrofe; na
segunda, a primeira e a segunda estrofes; na terceira, as três estrofes; e, no
fim, o poema completo), criando uma expectativa no leitor, que no final se
mostra frustrante – os desavisados pensarão que o poema das epígrafes é de
Qorpo-Santo, não de outro autor.
A
primeira parte, Qorpo-Santo Redevorado,
com seis capítulos, tem por ponto de
partida a redescoberta e as primeiras encenações das peças do “maníaco
escritor”, a partir de 1966. O autor aproveita para fazer as primeiras
considerações a respeito da obra de Qorpo-Santo, dando valiosas informações
adicionais sobre a Ensiqlopèdia (nos
dias de hoje, a internet não tem ajudado tanto quanto gostaríamos...)
Na
segunda parte, Qorpo-Santo e o
Redemoinho, nos dez capítulos, Flávio Aguiar disseca as peças completas de
Qorpo-Santo, buscando o devido significado nas ações dos personagens, nas falas
histéricas, nas críticas embutidas, anteriormente citadas.
Na
terceira parte de capítulo único, Qorpo-Santo
e a Engrenagem, algumas considerações a respeito do teatro da década de
1860 (que não passava por uma boa fase), as críticas a respeito (principalmente
da enxurrada de comédias francesas, de qualidade duvidosa, que ameaçavam
suplantar a produção nacional), e como as comédias de Qorpo-Santo se encaixam
nas características do teatro do século XIX – e como seriam vistas pela crítica
da época, se tivessem ganho montagem.
Na
última parte, Qorpo-Santo, Precursor de
Si Mesmo, as considerações finais, e as provas de que o “maníaco escritor”
se adiantou aos europeus com o Teatro do Absurdo.
O
livro é completo com notas e valiosos anexos: a cronologia da vida de
Qorpo-Santo; uma descrição dos seis fascículos conhecidos da Ensiqlopèdia; as encenações conhecidas
(até 1975) das peças de Qorpo-Santo (sabiam que foi feito, em 1971, um
curta-metragem baseado em uma das comédias do autor – Eu Sou Vida; Eu Não Sou Morte?); e referências sobre a fortuna
crítica (conjunto de estudos sobre a obra) de Qorpo-Santo.
Tudo
bem, OS HOMENS PRECÁRIOS é direcionado mais para quem é da área da literatura
brasileira. Tem trechos excessivamente técnicos, em linguagem acadêmica, e
soporífera ao leitor menos instruído. Mas o público já acostumado encontrará
uma leitura rápida (sério: ela passa voando em certos momentos), apesar das
suas 264 páginas (sem contar capa), e o escritor demonstra preocupação com o
leitor, pensando inclusive em quem não teve contato com as peças de
Qorpo-Santo. É um modelo para trabalhos literários e acadêmicos – penas que,
nos dias de hoje, seja difícil de encontrar. Também pesa o fato que, nas
prateleiras de uma biblioteca, o livro acabe passando despercebido, a menos que
o leitor já tenha encontrado uma referência a ele em outras obras. Contribui
para tanto a capa, com ilustração minimalista e pouco atraente de Cecília
Tavares Teixeira, e sem o subtítulo. Costuma ser assim com os livros de público
específico. Teria OS HOMENS PRECÁRIOS servido como referência para Luiz Antônio
de Assis Brasil escrever seu romance Cães
da Província? Acredito que sim: alguns trechos descritivos de Flávio Aguiar
sobre a vida de Qorpo-santo batem com trechos do romance.
Bão,
eu, através deste humilde e depreciável blog, já apresento uma referência, para
ver se o pessoal se interessa.
Atualmente,
a obra de Qorpo-Santo não é fácil de encontrar, apesar dos esforços de diversos
literatos em lançar compilações das peças, ou de seus poemas. Ainda não se
encontraram os volumes restantes da Ensiqlopèdia.
Será que ainda existem exemplares intactos dos volumes III, V e VI? O tempo
– e o interesse do público – é que vão dizer. Mas, nos tempos recentes, as
pessoas parecem mais interessadas no absurdo da vida que em teatro do
absurdo... ou quaisquer outras formas de teatro.
E há
de piorar, depois da eleição de Donald Trump para presidente dos USA...
PARA ENCERRAR...
Como
não poderia deixar de ser, aqui vai mais um trecho de minha folhetinesca HQ, O Açougueiro, realizada em parcelas, em
pílulas. Os motivos para a realização da HQ já se encontram distantes, e a
publicação da mesma completará um ano em dezembro, sempre com percalços. Além
do mais, a cabeça anda cheia de novos projetos a serem levados a cabo.
Mas
procurarei não decepcionar os meus 17 leitores cansados de Donald Trump, “PEC
do capeta” e outras mazelas que os maldosos gostam de propagar para estragar
nosso dia. Ninguém pode mais ver alguém feliz e satisfeito neste país, que já
jogam realidade quando a gente não está precisando...
Aguardem
novidades para breve. É tudo o que posso dizer agora.
Até
mais!
Nenhum comentário:
Postar um comentário