Olá.
Por
esses dias, deixei um pouco de lado algumas tarefas que assumi e estive
disposto a escrever e a atualizar este blog – repararam na quantidade de
postagens seguidas? Pois agora, do presente, onde estive até o momento,
resenhando obras recentes, retornamos ao passado, com mais um livro.
Retornaremos ao início do século XX.
Hoje,
falaremos de livro de História. Hoje daremos uma olhada em uma obra que analisa
um fato que, aparentemente, é de pouca importância para a História Brasileira, já
que, à primeira vista, nada influi nos rumos do país, mas tem seu valor por se
tratar de um crime passional famoso.
Hoje,
trazemos de volta aos holofotes uma historiadora brasileira da qual falei há
algum tempo atrás: Mary Lucy Murray Del Priore, ou simplesmente Mary Del Priore
(apesar do nome, ela é nascida no Rio de Janeiro).
Hoje,
vamos falar de MATAR PARA NÃO MORRER.
MATAR
PARA NÃO MORRER – A MORTE DE EUCLIDES DA CUNHA E A NOITE SEM FIM DE DILERMANDO
DE ASSIS foi lançado pela editora Objetiva, em 2009. Já falei uma vez de sua
autora, a historiadora Mary Del Priore, uma das pesquisadoras mais “pop” do
Brasil; o título referido foi Histórias
Íntimas, um de seus best-sellers e um dos livros que caracterizam o
trabalho da historiadora, pesquisadora e professora universitária: lançar obras
históricas de interesse geral, revelando aspectos pouco conhecidos do público
médio sobre fatos já conhecidos. Pense em algum grande tema histórico
brasileiro, provavelmente Mary Del Priore já deve ter abordado em algum dos
mais de 40 livros que escreveu, colaborou ou organizou. Sexualidade brasileira
(o já citado Histórias Íntimas);
religiões alternativas (Do Outro Lado); Império
Brasileiro (O Príncipe Maldito, Condessa
do Barral, O Castelo de Papel, A Carne e o Sangue); questão feminina (História das Mulheres no Brasil)...
Enfim, Mary Del Priore é uma das autoras que ajudam a tornar a História mais
atraente às multidões.
Suas
obras mais recentes, depois de Do Outro
Lado, são Beije-me Até Onde o Sol Não
Alcança, de 2015, e Histórias da
Gente Brasileira – Volume 1 – Colônia, de 2016.
A
escolha do tema de MATAR PARA NÃO MORRER é, antes de uma simples narrativa do
mais famoso caso de crime passional brasileiro, uma oportunidade para fazer um
retrato da sociedade do início do século XX, e das ideias correntes sobre
família, casamento, papel do homem e da mulher dentro do lar, defesa da honra,
etc., dentro de uma sociedade patriarcal e eminentemente masculina. Já volto a
essa parte.
Por
um momento, cheguei a duvidar da existência desse livro, já que ele não consta
na relação de obras no site oficial da autora (http://marydelpriore.com.br/ -
que, aliás, já está precisando de uma atualizada). Em uma consulta prévia na
internet, encontrei um rumor a respeito de uma polêmica envolvendo MATAR PARA
NÃO MORRER – os herdeiros de Euclides da Cunha teriam movido uma ação contra
Mary Del Priore por conta do modo como foi abordada a morte do escritor, e a
simpatia que a autora demonstrou para com o responsável por essa morte,
Dilermando de Assis. Porém, nada formalmente confirmado.
Bem.
À parte da capa pouco atraente, e da ausência total de ilustrações que o livro
de 176 páginas apresenta, a leitura de MATAR PARA NÃO MORRER é prazerosa e ao
mesmo tempo angustiante: prazerosa, por causa da linguagem acessível e por
causa do exercício de micro-história feito pela autora, reconstituindo um
panorama inteiro de uma época a partir de um pequeno fato, desde as concepções
de família até a emergência do futebol no início do século XX; e angustiante,
porque não tem como não se sensibilizar com o drama pessoal dos personagens
envolvidos, vítimas de uma campanha agressiva movida por uma sociedade de
ideologia tacanha, a do Brasil da República Velha (1889 – 1930): essa sociedade
não favorecia nem a mulher, nem quem se envolvesse em uma aventura amorosa –
ainda mais quando o par já era casado. Época em que a honra de um homem era
lavada com sangue; onde a mulher que traía o marido pagava, não raro, com a
própria vida, e onde se dava um jeito para que a culpa de tudo caísse na vítima
ao invés do agressor – seria a cônjuge que não estava cumprindo com seus
deveres de mãe, esposa, rainha do lar.
O
jornalista, engenheiro e escritor carioca Euclides da Cunha, sua esposa Ana
Emília, o filho mais velho deles, Euclides Júnior, o jovem tenente Dilermando
de Assis e o irmão deste, Dinorah de Assis, são os personagens principais de
uma trama, tão novelesca que inspirou outros livros e até uma série de TV da
Rede Globo, que arruinou as vidas dos membros de uma família inteira.
Mary
Del Priore não foi a única a se debruçar sobre o caso: outros escritores e
historiadores já trataram da chamada “Tragédia da Piedade”. Até mesmo o próprio
Dilermando de Assis já tratara do caso em livro, contando sua versão dos fatos;
e até uma das filhas deste, Judith Ribeiro de Assis, já relatara a respeito do
caso em outro livro.
A TRAMA DA NOVELA
Muita
gente já deve ter ouvido falar da história: no dia 15 de agosto de 1909, Euclides
da Cunha invadiu uma casa no bairro da Piedade, no Rio de Janeiro, para tirar
satisfações com Dilermando de Assis; fora lá “para matar ou morrer”. Euclides
conseguiu acertar dois tiros de revólver em Dilermando – um na virilha e outro
no peito, mas sem gravidade – e ainda acertou um tiro nas costas de Dinorah,
que também se encontrava no local; mas o tenente conseguiu alcançar sua arma e
acabou assassinando Euclides, em legítima defesa. Motivo para tal ato agressivo:
o escritor fora traído pela esposa, Ana Emília, a Dona Saninha.
Euclides
da Cunha (1886 – 1909) ficou nacionalmente conhecido pelo livro Os Sertões (1902), que trata do relato da Guerra de Canudos (1896 – 1897), o
conflito entre o Governo Brasileiro e a comunidade popular fundada por Antônio
Conselheiro no interior da Bahia. O livro é baseado na experiência do autor na
região, como correspondente do jornal A
Província de S. Paulo (atual Estado
de São Paulo). Euclides da Cunha, colocado na categoria literária do pré-modernismo
ao lado de nomes como Lima Barreto e Monteiro Lobato (quem não fugiu das aulas
de literatura brasileira na escola sabe), foi quem tornou nacionalmente
conhecida a figura do sertanejo nordestino, marginalizado e sujeito às
intempéries de uma região praticamente esquecida pelo governo brasileiro da
época, mas que a tudo consegue suportar; ou, nos dizeres do escritor, “o
sertanejo, antes de tudo, é um forte”.
Bem.
Na época de seu lançamento, Os Sertões
foi sucesso de público e crítica. Euclides da Cunha, de um obscuro engenheiro e
jornalista, passou a intelectual de
pose, sendo, inclusive, eleito membro da Academia Brasileira de Letras.
Porém,
na visão simplista que o povo de instrução mediana adotou da História, hoje Os Sertões é considerado um livro chato
e difícil de ler, “um catatau bastante preconceituoso a respeito da campanha
libertária de Antônio Conselheiro” – sobre essa última parte, há controvérsias
por parte dos historiadores “politicamente incorretos”, ou melhor, os
revisionistas “da direita” (segundo a turma que ainda se guia pelo marxismo) –
e hoje nem é mais considerada a melhor fonte de pesquisa sobre a Guera de
Canudos. Em outra oportunidade, eu volto a tratar dessa questão.
Nem
Euclides da Cunha, por si, escapa de acusações: a mesma visão simplista diz que
Euclides da Cunha era incompetente na vida familiar, só pensava em trabalho e
em fama, era excessivamente temperamental e não estava nem aí para a mulher e
os filhos. É verdade – em parte.
A
parte de ele ser “incompetente” e “só pensar em trabalho” explica por que sua
esposa, Ana Emília da Cunha, posteriormente Ana de Assis, traiu Euclides com
Dilermando. Em 1904, Euclides partira para o Amazonas, a fim de acompanhar de
perto a questão do território do Acre, em vias de ser comprado da Bolívia pelo
Brasil; e deixara Dona Saninha sozinha, sem dinheiro, sem lugar para morar com
os três filhos, e sem poder contar sequer com a ajuda dos familiares. A mulher,
filha de um dos artífices da Proclamação da República de 1889 (que um dia até
mesmo reclamara com Euclides do modo como este tratava a filha e os netos), e que
vivia uma relação cheia de conflitos domésticos com o marido, fora obrigada a
se mudar para uma pensão com o filho mais novo, depois de colocar os mais velhos
em um colégio interno. Naquela pensão, ela conheceu, em um dia de 1905, o então
aluno da Escola de Guerra do Rio de Janeiro, Dilermando de Assis, então com 17
anos, muito mais novo que Dona Saninha, que contava 34 anos. Dilermando era
sobrinho de uma das mulheres que acolheram Dona Saninha na pensão. Os dois
acabaram se apaixonando, e vivendo um romance tranquilo, até que Euclides
retornou, em 1906, afetado por doenças tropicais e sem ter conseguido reunir
nada de relevante, que pudesse lhe render um segundo sucesso comercial. Pior:
Euclides não demorou a descobrir o caso, pois Dona Saninha engravidara do
amante – que, para desgosto da mulher, tivera de ser transferido, em 1906, para
Porto Alegre.
O
mais sombrio é que Euclides teria causado a morte do bebê, batizado de Mauro:
vários historiadores são unânimes em afirmar que fora Euclides quem matou Mauro
de inanição ao impedir Dona Saninha de amamenta-lo. E ainda enterrou o cadáver
da criança no jardim.
Algum
tempo depois, Dilermando retornou ao Rio de Janeiro. E conseguiu ter, com Dona
Saninha, um segundo filho, Luiz, o Lulu, que Euclides de viu obrigado, desta
vez, a ajudar a criar. Euclides chegou a ficar, por um tempo, amigo de
Dilermando, porém descarregava toda sua raiva em Dona Saninha. E a pressão da
sociedade era grande: devido às regras daquela época, Euclides se via
humilhado: além de estar doente e de não ter conseguido uma promoção em seu
trabalho, como era possível que um intelectual, autor de best-sellers e membro
da academia de letras fosse “chifrado” pela esposa, e ainda por cima por um
oficial de baixa patente do exército, loiro, atlético e mais novo que ele?! É
demais para o ego de uma pessoa como Dr. Euclides – na época, uma pessoa em
tais condições só podia ser motivo de zombarias na rua. Claro que a resposta
para tais problemas só poderia ser uma só: Euclides deveria lavar a honra com o
sangue de Dilermando. E acabou dando no que deu.
Mas
pior foi o que veio depois: Dilermando, pouco tempo depois, conseguiu se casar
com Dona Saninha, tendo outros filhos com ela. Foi a julgamento pela morte do
Dr. Euclides, mas conseguiu ser absolvido por ter conseguido provar que o matou
em legítima defesa. Que fora o escritor quem o atacara primeiro. E isso que,
nos primeiros depoimentos, o oficial do exército se contradisse, e praticamente
assumiu a culpa. Por conta dos inúmeros ataques da imprensa e da sociedade, que
estava, evidentemente, a favor do Dr. Euclides – afinal, era um escritor famoso
– Dilermando teve de carregar, pelo resto da vida, a pecha de grande culpado
pela Tragédia da Piedade, de sedutor, de assassino, tudo por conta de sua
“molecagem” de ter se apaixonado por uma mulher casada.
E
não foi uma única vez, não: em 1916, Dilermando fora vítima de um novo atentado
a bala, desta vez levado a cabo por Euclides Júnior, o Quidinho. Dilermando
estava em um cartório do Rio de Janeiro, quando foi alvejado por Quidinho,
então um estudante da Escola Naval, e que sofria grande pressão de seus colegas
para que vingasse a morte do pai. Mas se deu mal: Dilermando conseguiu revidar,
e acabou matando o enteado a tiros. Foi novamente a julgamento, inocentado por
ter conseguido provar que a morte de Quidinho foi em legítima defesa, mas a
imprensa o atacou de novo.
Quidinho
não foi o único dos filhos legítimos de Euclides a sofrer com o estigma
familiar. O mais velho, Sólon, se tornara delegado de polícia e fora trabalhar
no Acre, onde morreu de doenças tropicais. Pedro Afonso, o caçula, foi pivô de
uma disputa judicial entre a família e o tutor designado para cuidar dele. E
nenhum dos filhos de Euclides se dava bem com o padrasto, embora Dilermando
tivesse acolhido a todos e os tratasse bem. No primeiro processo movido contra
Dilermando, Sólon acabou se contradizendo diversas vezes em seu depoimento,
devido à pressão da imprensa.
Dilermando
bem que tentou compensar, com trabalho e esforço, os crimes cometidos.
Conseguiu viver uma vida tranquila e harmoniosa com Dona Saninha e seus filhos,
e conseguira chegar à patente de general. Porém, o casamento com Dona Saninha
não durou muito: ele se apaixonou por outra mulher, e se separou em 1926. Só
reviu Dona Saninha quando ela morreu de câncer, em 1932. Dilermando faleceu em
13 de novembro de 1951, pouco tempo depois de a revista O Cruzeiro ter dedicado a ele uma série de reportagens. No mesmo
ano, era publicado o seu livro, A
Tragédia da Piedade, sua versão dos fatos, sua “redenção”.
A
Tragédia da Piedade afetou muito mais gente. Dona Saninha teve se aguentar,
evidentemente, a humilhação pública de ter sido o pivô da morte do legítimo
esposo. Mas o pior foi com o irmão de Dilermando, Dinorah. O então aspirante da
marinha também era promessa do futebol, tendo atuado pelo time do Botafogo – e,
mesmo com a bala alojada em sua coluna, conseguiu jogar um ano e ainda ajudar o
time a ganhar o campeonato carioca de 1910. Porém, aos poucos, Dinorah, vítima
de erros médicos, foi perdendo os movimentos das pernas, e passou a depender de
cadeira de rodas e do auxílio do irmão. Sua carreira promissora como militar e
esportista fora destruída. Acabou se tornando alcoólatra e mendigo em Porto
Alegre, RS, onde se suicidou, jogando-se com sua cadeira de rodas no cais do
porto.
E,
assim, desenrolou-se uma tragédia que destruiu a vida de duas famílias, os
Cunha e os Assis.
A HISTÓRIA TRATADA NO LIVRO
Em
MATAR PARA NÃO MORRER, Mary Del Priore, como já dito, faz um exercício de
micro-história: parte da Tragédia da Piedade para fazer um panorama completo da
sociedade de seu tempo. Nos cinco capítulos do livro, fala a respeito,
inicialmente, das concepções ideais de família da época: o marido como
provedor, a mulher como dedicada ao lar e aos filhos, portanto, submissa ao
marido, e criada desde pequena unicamente para isso; vergonha para a mulher do
início do século XX era ser solteira. Quem traísse o marido poderia pagar com a
vida; e, no julgamento, o homem que matasse a esposa “traidora” nem acabava
preso: conseguiam fazer com que a culpa do crime recaísse sobre a mulher
adúltera – mesmo que o casamento não lhe trouxesse felicidade, o que poderia
justificar um adultério, a mulher não podia contrariar a “lei de Deus”.
A
autora aproveita cada gancho oferecido pela história: também fala do
funcionamento das instituições jurídicas e militares, para tentar traçar o
passado de Dilermando e Dinorah, dois estudantes dedicados e precocemente
órfãos; fala a respeito da imprensa da época, e de como ela abordava os fatos
(não raro de forma sensacionalista), ao se referir aos ataques a Dilermando; e
também fala a respeito da moda daquele momento, o futebol, que ajudava a formar
homens que depois se tornariam modelos para a sociedade. Os esportistas, ou sportsmen, eram verdadeiros modelos de
homens, íntegros à sociedade e retratos de saúde. Se encaixa para caracterizar
Dinorah de Assis, uma carreira promissora brutalmente interrompida.
A
falha da autora, no entanto, foi ter dado pouca atenção à carreira e à obra de
Euclides da Cunha – passa por alto Os
Sertões e suas outras obras. Mary Del Priore se detém apenas nos bastidores
da Tragédia da Piedade, e na tragédia pessoal de Dilermando de Assis, incluindo
o assassinato de Quidinho, tudo contado em detalhes. O pior é que o livro não
traz nem um caderno iconográfico, com imagens da época. Nem uma ilustração. Só
um projeto gráfico diferenciado.
E,
hoje, é difícil saber quem é o verdadeiro vilão da história. De um lado, um
escritor renomado, temperamental, marido pouco competente e que só pensava em
trabalho. De outro, um oficial do exército, às vezes poeta, sedutor loiro e assassino,
que cometera uma molecagem de adolescente e teve de pagar por essa molecagem
pelo resto da vida. E, no meio, uma mulher a quem foi tirado, várias vezes, o
direito de ser feliz; um rapaz que sofria bullying por ser filho de um homem
que foi morto pelo padrasto; e uma jovem promessa do futebol que terminou seus
dias aleijado, mendigando pelas ruas.
Ou
melhor: essa história não teve heróis nem vilões, apenas vítimas. Tudo por
causa do 15 de agosto de 1909. Tudo por causa de uma molecagem ocorrida a partir
de uma visita em uma tarde de 1905. Tudo porque alguém havia ousado escolher
sua forma de ser feliz naquela República Velha onde poucos tinham esse direito,
ainda mais se eram do povo.
De
todo modo, o livro ainda não é tão difícil de encontrar em livrarias e bibliotecas.
PARA ENCERRAR...
...como
de praxe, toda vez que resenho algum livro de História aqui no blog (desde uma “molecagem”
ocorrida em um dia de dezembro de 2015), coloco aqui mais algumas páginas de
minha HQ folhetinesca, O Açougueiro, cujo
fim ainda está longe, e indefinido. E ainda tive de refazer e reescanear
algumas páginas ao longo do tempo...
Devido
a alguns percalços, só consegui produzir duas páginas para esta ocasião. E já
estamos próximos da 100ª página publicada. E ainda vai ter mais... E ainda não
há definição se a “obra” vai ter versão impressa.
Mas
veremos como vai ficar.
Aguardem
novidades.
Até
mais!
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