Olá.
Enquanto
escrevo, ainda é Carnaval no Brasil. A festa popular. A “festa dos loucos”,
como antigamente chamavam. E estamos, decididamente, em tempos loucos. Enquanto
escrevo, ainda há manifestações carnavalescas em diversas partes do Brasil. E,
já que é Carnaval, então iremos carnavalizar.
Hoje,
vou falar de filme. Já que é Carnaval, o filme escolhido é dos mais
carnavalescos, apesar de ser, em realidade, um filme sério. Ainda por cima, é
brasileiro. E antigo. Dos final dos anos 1960. Mas, antes de torcer o nariz,
procurem ler até o final o que tenho a dizer sobre esse filme.
Hoje,
vou falar de AZYLLO MUITO LOUCO, um dos filmes menos lembrados da filmografia
do cineasta Nelson Pereira dos Santos.
Bem:
AZYLLO MUITO LOUCO, rodado em 1970, tem roteiro e direção de Nelson Pereira dos
Santos, um dos diretores brasileiros mais premiados – por algum tempo, seus
filmes foram presença constante em premiações brasileiras e internacionais (já
volto a esta parte). O filme é uma livre adaptação do conto O Alienista, de Machado de Assis – do
qual falei anteriormente, quando tratei de sua versão em quadrinhos.
Bão:
Nelson Pereira dos Santos é um dos mais importantes cineastas brasileiros do
século XX. Um dos precursores do movimento do Cinema Novo (“uma ideia na cabeça
e uma câmera na mão”), ele praticamente se especializou em adaptações de obras
literárias para o cinema – seus filmes mais lembrados são livres adaptações de
obras de Graciliano Ramos, Nelson Rodrigues, Jorge Amado, Machado de Assis e
Hans Staden. Entretanto, ele não abria mão da alegoria e da crítica social, tal
como seus colegas Ruy Guerra e Glauber Rocha.
Já
havia falado, neste blog, anteriormente, de um de seus filmes mais lembrados, Como Era Gostoso o Meu Francês (1971). A
filmografia de Nelson Pereira dos Santos inclui ainda, dentre vários outros: seu
primeiro longa-metragem, Rio 40 Graus (1955);
Boca de Ouro (1962); Vidas Secas (1963); El Justicero (1967); Fome de
Amor (1968); O Amuleto de Ogum (1974);
Tenda dos Milagres (1977); Na Estrada da Vida (1980); Memórias do Cárcere (1984); Jubiabá (1987); A Terceira Margem do Rio (1994); e Brasília 18% (2006), só para citar os mais conhecidos. Seus filmes
receberam diversas indicações para prêmios internacionais – foram várias, por
exemplo, para receber a Palma de Ouro do Festival de Cinema de Cannes, na
França. O cineasta também teve de lutar muito contra a censura do período do
Regime Militar (1964 – 1985), que insistia em mutilar seus filmes – Como Era Gostoso o Meu Francês foi um
dos que mais sofreram.
Bueno.
AZYLLO MUITO LOUCO (assim mesmo que se escreve, na forma arcaica para “asilo”)
foi rodado na cidade de Paraty, no Rio de Janeiro, onde o cineasta passou algum
tempo exilado – Nelson Santos rodou três filmes no período de 1968 a 1973, em
que morou em Paraty. AZYLLO MUITO LOUCO contou, inclusive, com moradores da
cidade na figuração. Embora siga a linha do célebre conto de Machado de Assis,
publicado entre 1881 e 1882, não se trata de uma adaptação fiel. O diretor
tomou diversas liberdades para criar uma versão diferenciada do conto
machadiano, porém mantendo a proposta original – a discussão sobre a definição
de loucura e sobre os limites da sanidade. O filme foi até indicado para
concorrer à Palma de Ouro em Cannes, no mesmo ano de 1970. É possível dizer que
o filme é fiel ao conto machadiano até os 20 minutos finais (no total, o filme
tem, em média 80 minutos). Ainda assim, é a única adaptação para cinema de O Alienista – fora isso, o conto tem
ainda uma adaptação para TV e cerca de cinco para quadrinhos.
A
primeira coisa que se tem a dizer sobre AZYLLO MUITO LOUCO é: o filme é
realmente fiel à sua proposta. O filme é colorido e extravagante, com
influência do movimento tropicalista do período. Abusando das tomadas externas
e ensolaradas (cortesia do diretor de fotografia Dib Lufti) e dos cenários
montanhosos da cidade histórica de Paraty. Os figurinos dos personagens são, de
acordo com a definição de hoje, carnavalescos: Nelson Santos tinha a intenção
de reproduzir em live-action as
vestimentas vistas em ilustrações dos século XIX, principalmente as do francês
Jean Baptiste Debret. Resultou em figurinos inacreditáveis, de tão coloridos,
extravagantes e aparentando terem sido confeccionados com baixo orçamento – os
chapéus masculinos, por exemplo, parecem ter sido confeccionados com papel
cartolina. Aliás, o filme todo parece ter sido feito com baixíssimo orçamento,
apesar das pretensões do diretor (mais referências adiante). Sério mesmo que as
pessoas se vestiam daquele jeito na província do Rio de Janeiro do século XIX?!
Com isso, fica difícil definir qual é a época exata em que a história se passa
– se na primeira ou na segunda metade do século XIX.
A
ânsia com essa reprodução das gravuras de Debret se estendeu também a elementos
de cena: vários dos personagens se deslocam pelo cenário usando liteiras
conduzidas por escravos, ressaltando a crítica social presente no enredo. E os
personagens saem, constantemente, em cortejos e procissões.
Pensando
bem, para um filme que discute sobre a loucura, esses elementos carnavalescos
sejam propositais por parte do diretor.
Mas
o mais perturbador, em todo o filme, é a trilha sonora, composta por Guilherme
Magalhães Vaz. As músicas orquestradas de suspense, com breques violentos,
mantém um clima de tensão constante, como se algo ruim estivesse prestes a
acontecer a qualquer momento. Com isso, apesar do título que lembra um filme de
Sessão da Tarde e de ser classificado como uma comédia, AZYLLO MUITO LOUCO é um
filme sério e perturbador, não foi feito para rir, e é um dos mais cerebrais de
nosso cinema. Necessita atenção total do espectador, mesmo de quem já se
“preveniu” e leu o conto machadiano anteriormente.
O
elenco conta com atores e atrizes cujos nomes hoje são pouco lembrados. A mais
conhecida é a modelo Leila Diniz – é, aquela, a que usou biquíni grávida,
dentre outros feitos que a classificam como uma das baluartes do feminismo
brasileiro. Além dela, lembramos ainda de Arduíno Colasanti e Ana Maria
Magalhães, que no ano seguinte integrariam o elenco de Como Era Gostoso o Meu Francês. Entram ainda no elenco: Nildo
Parente, Isabel Ribeiro, Irene Stefânia, Nelson Dantas, Manfredo Colasanti,
José Kleber, Gabriel Archanjo, Ney Santanna e vários outros.
Oh:
as chocantes imagens na abertura do filme, nos créditos iniciais, de cabeças
dissecadas, são reproduções de ilustrações extraídas do livro do anatomista
europeu Andreas Vesalius.
Comecemos
apontando para algumas das liberdades tomadas pelo diretor que diferenciam
AZYLLO MUITO LOUCO de O Alienista.
Eles
começaram mudando o ofício do protagonista, Simão Bacamarte (Nildo Parente): de
médico, ele virou padre. Logo, sua relação com a personagem Dona Evarista
(Isabel Ribeiro) mudou: no conto original, Evarista é a esposa de Simão; no
filme, é apenas amiga – uma senhora rica que financia as ações do Padre Simão.
Foi Evarista quem providenciou a vinda do Padre Simão da Europa para a vila de
Serafim (no conto, Itaguaí), para cuidar da igreja local, que se encontra
abandonada – o padre anterior levara até as imagens. A chegada do Padre à vila
inclui até um pregoeiro, fazendo o anúncio com rimas e com um traje
espalhafatoso (inclui até um pajem para carregar seu banquinho), e um cortejo
que lembra os vistos em Carlota Joaquina
– Princesa do Brazil (1994), de Carla Camurati.
O
Padre Simão, escandalizado pelo fato de os loucos da vila ficarem trancados em
suas casas, aprisionados por seus familiares, convence Dona Evarista a investir
em um segundo projeto: um asilo de loucos, a Casa Verde, instituição inédita
até então no Brasil como um todo, construída e financiada via doações da
comunidade. Em princípio, e se apoiando tanto em preceitos científicos como de
religião, ele cuida dos casos clássicos de loucura, os pacientes circulam
livremente por um amplo pátio no lado externo do casarão.
Mais
tarde, em conversa com o médico Crispim (ator não identificado), Simão
convenciona a ampliação de seus experimentos, do conceito de loucura, e
pretende, assim, erradicar a loucura em todas as suas formas – o que já começa
a escandalizar a população local, quando cidadãos tidos como bem quistos e
vistos pela comunidade como sãos, acabam internados. Entre eles, um certo Costa
(ator não identificado), que dilapidou sua fortuna distribuindo dinheiro e
benfeitorias a todos, mas sendo incapaz de cobrar os empréstimos feitos; e sua
prima (atriz não identificada), que, ao tentar interceder em favor de Costa,
conta ao padre uma história delirante.
O
experimento tem o total apoio de Dona Evarista e de Crispim – este atua como
médico de enfermidades comuns, por alguns dias da semana, dentro da Casa Verde,
enquanto o Padre Simão se ocupa das doenças mentais.
A
oposição ao empreendimento começa a crescer. Um movimento para instigar a ira
da população contra a Casa Verde está sendo orquestrado. Alguns “figurões”
locais, contrariados porque as internações constantes na Casa Verde, de pessoas
da população e escravos, acabam soando como mera desculpa para evitar o
trabalho, querem que o movimento anti-Casa Verde seja liderado pelo rico e
ocioso Porfírio (Arduíno Colasanti), que vive com sua amante (Irene Stefânia).
Em princípio, Porfírio (que no conto original é barbeiro, que consegue assumir
temporariamente o governo da cidade) procura evitar o conflito com o padre,
mas, depois, decide tomar a frente do movimento.
Porém,
logo, o jogo “vira” diversas vezes. Porfírio dá seu apoio à Casa Verde, ao
invés de destruí-la. Nesse ponto, depois de saber do conflito entre
oposicionistas e apoiadores da Casa Verde, que provocou correria e tumulto, o
Padre tem outra ideia: decide internar na Casa Verde as pessoas consideradas
“sãs”, isolando-as dos loucos de fora, considerando teorias que se encaixam com
a divisão de classes locais. Entre os pacientes, todos pertencentes às elites
locais, ficam Dona Evarista, Crispim, sua esposa Eudóxia (Leila Diniz),
Porfírio, sua amante, e um juiz local (Manfredo Colasanti). Mesmo aparentando
sanidade, logo os personagens começam a assumir atitudes ilógicas. Dona
Evarista tem um surto de megalomania, além de flutuações constantes de humor, e
Crispim, bem como outros pacientes, passa a andar pelo terreno de camisa de
força.
Porém,
o clima na Casa Verde começa a ficar pesado. A ponto da amante de Porfírio,
contrariada porque este não toma uma atitude, instigar um movimento contra o
Padre. Quem toma a frente do movimento é um Capitão da Guarda (ator não
identificado), que consegue tomar o comando da Casa Verde – e o Padre Simão
acaba se tornando prisioneiro em seu próprio hospício. Nesse ponto, o enredo
começa a perder seu sentido, quando os personagens estão tomados pelas ações
ilógicas – em uma cena, todos pastam pelo terreno como bois, andando de quatro
e comendo grama. Essa parte não consta no conto original.
Até
que, no final, o Padre, julgado pelos pacientes, acaba ele mesmo se entregando
à loucura, ficando sozinho na Casa Verde, enquanto os outros vão embora.
Quem
for se aventurar em assistir AZYLLO MUITO LOUCO, corre o risco de acabar se
perdendo na história, distraídos que ficarão com os figurinos extravagantes e
as interpretações idem – talvez seja isso que Nelson Pereira dos Santos queria.
Quem sabe, o espectador consiga até encontrar as críticas sociais embutidas no
roteiro, alegorias da situação do país no período da Ditadura Militar. A
montagem de Rafael Justo Valverde deixa a narrativa mais labiríntica. O clima é
perturbador, ainda, pelos cenários – Nelson Pereira dos Santos alugou, para as
locações, prédios que estavam em processo de degradação, com paredes sujas,
descascadas e com inscrições, como que prestes a desabar. E nem se deu ao
trabalho de reforma-los.
Pelos
critérios de hoje, AZYLLO MUITO LOUCO é um filme thrash – aliás, há tanta gente que classifica o cinema brasileiro,
como um todo, como thrash. Mas não é
o nosso pior exemplo. É um filme feito mais para debates em sessões especiais
do que para o público em geral. Eu mesmo tenho dificuldades em dar uma correta
definição para o filme.
É
até fácil encontrar o filme em DVD, mas, enquanto escrevo, AZYLLO MUITO LOUCO
está disponível também no YouTube – há muitos filmes nacionais disponíveis no
site, que ainda é o principal veículo de quem gosta de vídeos. Eu mesmo já
resenhei, neste blog, muitos filmes nacionais que estão disponíveis, de forma
integral, no YouTube, principalmente filmes mais antigos. Nesse sentido, o
YouTube presta um relevante serviço, facilitando a vida do garimpador de filmes
antigos. Claro que também depende da boa vontade das pessoas que fazem o upload
de filmes antigos e digitalizados no site... Bem, de todo modo, AZYLLO MUITO
LOUCO está disponível no YouTube, de forma integral. Aqui: https://www.youtube.com/watch?v=_-BSYGPgp0g.
Imagens extraídas da internet.
Para
encerrar, fiquem, mais uma vez, com O
Açougueiro, minha HQ folhetinesca. O esforço é grande para que a história
mantenha sua coerência – não é fácil, visto a forma como é publicada, em
“pílulas”. E minha mania de adiar as cenas de clímax com sequências
excessivamente longas de diálogo. E ainda mais que resolvi incluir versos,
poemas, nesta narrativa. A melodia das canções fica a cargo da imaginação dos
leitores.
Como
estou indo, passadas mais de 120 páginas publicadas?
Em
breve, mais adaptações literárias, ou livros integrais, para meus 17 leitores.
Evocando épocas mais interessantes que a de hoje. Quando as ameaças à vida
humana não eram tão frequentes.
Até
mais!
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