Olá.
Hoje,
antes do findar do mês de abril, trago a vocês outro livro, versando sobre
história, sobre micro-história. Uma história ampla a partir de um fato pequeno.
Hoje,
é mais um livro do escritor gaúcho Rafael Guimaraens, atual especialista na história
de sua cidade natal, Porto Alegre, RS, e do qual falei aqui várias vezes. Mas,
em seu livro mais recente, ele resolveu avançar um pouco no tempo. O fato
retratado em questão, que também tem Porto Alegre como palco, é mais recente, e
lida com um tema delicado: o período do Regime Militar Brasileiro (1964 – 1985),
do qual uns tem saudade, outros nem querem lembrar – e iniciado em um mês de abril.
De certa forma, faz um link com fatos recentes.
Eis
aqui O SARGENTO, O MARECHAL E O FAQUIR.
O
SARGENTO, O MARECHAL E O FAQUIR foi publicado em 2016, pela editora Libretos,
pela qual quase toda a obra do autor foi lançada. Suas 271 páginas, divididas
em quatro partes e vários subcapítulos, procuram reconstituir, em um estilo
rápido e ágil, similar ao que o autor usou em Tragédia da Rua da Praia, a biografia e os últimos passos da
primeira vítima fatal da repressão desencadeada pelo Golpe Militar de 1964. O
martírio do sargento do Exército Manoel Raymundo Soares (1936 – 1966) ocorreu
em Porto Alegre.
Em
estilo de romance policial, com a narrativa não-linear fragmentada e
entrecortada, e com um caderno iconográfico com muitas fotos no meio do livro,
acompanhamos as trajetórias dos três personagens referidos no título: o
sargento, o referido Manoel Raymundo Soares; o Marechal Humberto de Alencar Castelo
Branco, o primeiro presidente do Regime Militar iniciado com a deposição do
então presidente João Goulart; e o faquir e cenógrafo Edu Rodrigues. Desses
três personagens, a trajetória de apenas dois se cruzam pessoalmente, e
brevemente.
A
começar pelo sargento. Manoel Raymundo Soares nasceu em 15 de março de 1936, em
Belém do Pará. De origem muito pobre, o jovem Manoel soube aproveitar as
oportunidades que a vida lhe ofereceu para mudar de vida. Estudioso, autodidata
e leitor compulsivo, conseguiu, com muito esforço e determinação, se diplomar
como torneiro-mecânico no Instituto Lauro Sodré, de Belém. Aos 18 anos, Manoel
parte para o Rio de Janeiro, onde seguiu carreira militar, chegando ao posto de
sargento. Duas características definiram seu caráter: o gosto pela cultura
erudita – era apreciador de música clássica, leitor compulsivo e frequentador
de teatros –, que ele procurou dividir com as pessoas de sua convivência; e o
desejo de lutar contra toda forma de injustiça. Manoel sempre foi um exemplo de
conduta e de coragem, tanto para seus colegas de farda quanto de luta armada. Um
de seus maiores amigos foi Araken Vaz Galvão, parceiro em diversas atividades. Ainda
no Exército, ele conheceu a futura esposa, a operária Elizabeth Chalupp Simão,
a Betinha. Inicialmente os dois, devido às regras do Exército, só se viam à
distância, depois passaram a morar juntos, só mais tarde oficializando a união.
Ambos seriam fieis um ao outro, pelo restante de suas vidas.
A
luta contra as injustiças, principalmente as que ele observou no próprio
exército, e insuflada por suas leituras, levou o sargento Raymundo – Manelito para
a esposa – a tomar parte em algumas rebeliões contra seus superiores. Uma delas,
baseada em uma homenagem a um general semiaposentado nomeado líder da rebelião,
ocasionou sua primeira prisão, em 1963, e uma transferência forçada para o Mato
Grosso, servindo uma guarnição distante. Pouco depois, ele e a esposa
retornaram ao Rio de Janeiro. Em 1964, Manoel acabou expulso do Exército, após
nova tentativa de rebelião, passando a sobreviver de outras profissões,
enquanto convivia, o quanto possível, com Betinha. Apesar da exoneração, ainda
mantinha contatos com seus colegas de exército, planejando novas ações. Em
1966, uma nova tentativa de rebelião o trouxe até Porto Alegre.
Já o
Marechal, Humberto Castelo Branco, chegou à presidência da nação por vias
acidentadas. Ele assumiu o governo em 15 de abril de 1964, eleito indiretamente
pelo Congresso, depois de um período em que, desde o dia 1º de abril, o governo
foi exercido por uma junta militar formada após a deposição do presidente João
Goulart. O governo de Castelo Branco foi caracterizado pelo gradual
endurecimento do Regime, no que ele mesmo acreditava que fosse uma série de
ajustes antes da devolução do poder aos civis. Castelo Branco foi um dos que
acreditavam que o Golpe foi necessário para salvar o país de uma ameaça considerada
ainda pior – a transformação do Brasil em uma República Comunista, tal como
aconteceu a Cuba, o que, segundo diziam os apoiadores da “Revolução de 64”,
João Goulart pretendia. Durante o governo de Castelo Branco, se discutia muito
a respeito dos futuros rumos da “Revolução”, se o destino era o abrandamento ou
o endurecimento; no fim, Castelo Branco viu seus planos irem por água abaixo,
com a vitória da ala “linha-dura”, onde se incluía seu sucessor, Artur da Costa
e Silva, que assumiria em 1967. A “linha-dura” foi responsável pelo
endurecimento do Regime Militar, cujo ápice foi o AI-5, em 1968 – embora no
governo de Castelo Branco tenha se observado a assinatura das primeiras medidas
limitadoras das liberdades civis.
Castelo
Branco teve de assistir e intervir, no que foi possível, no caso que ficou
conhecido como “Caso das Mãos Amarradas”.
Edu
Rodrigues, o faquir natural de Porto Alegre, acabou se tornando o vilão da história,
embora não quisesse. Antes de tentar a carreira como faquir, então um talento circense
em moda no Brasil, Edu Rodrigues sobrevivia de bicos e pequenas contravenções.
Então, sob o pseudônimo de Príncipe Aladim, e copiando truques de outros
faquires que fizeram sucesso na Capital gaúcha, Edu Rodrigues tentou fazer
carreira com demonstrações de resistência física, exibindo-se em camas de
pregos, se fazendo trancar por dias em caixas de vidro... mas, em todas as
vezes, acabou fracassando, devido à falta de preparo físico e psicológico
necessárias para suportar as dores da profissão, entre elas a privação de
alimentos ou líquidos. Certa vez, tentou crucificar-se, tal como Jesus cristo,
mas não aguentou o tempo que disse que aguentaria; em outra, tentou um golpe
para escapar de uma demonstração. Falido e malquisto pelo público, Edu
Rodrigues encontrou alguma estabilidade como cenógrafo, pintor de cenários no
Theatro São Pedro, também fazendo bicos em atividades político-partidárias.
Foi
o destino que fez os caminhos de Manoel Soares e Edu Rodrigues se cruzarem, em
março de 1966. Manoel, escondido em um pequeno apartamento em Porto Alegre, junto
com amigos, planejou sua última ação política: distribuir panfletos contra a
presença de Castelo Branco, que visitaria a cidade naqueles dias. Acabou
conhecendo Edu Rodrigues por acaso, que se dispôs a ajudar na panfletagem.
Manoel Rodrigues passou alguns dias fechado no apartamento emprestado,
preparando os panfletos impressos com tipos feitos com pão dormido. Mas, no
momento em que ia iniciar a atividade, no dia 11 de março, Manoel acabou sendo
preso, enquanto aguardava Edu Rodrigues no Parque Farroupilha. Edu Rodrigues o
denunciara às autoridades.
Manoel
Rodrigues foi levado ao quartel da 6ª Companhia de Guardas da Polícia do
Exército, filial porto-alegrense do Departamento de Ordem Política e Social, o
temido DOPS, onde acabou sendo torturado. A seguir, em maio de 1966, foi levado
à Ilha do Presídio, atualmente Ilha das Pedras Brancas. O presídio lá existente
hoje está em ruínas. Bem: Manoel permaneceu ali por algum tempo. De lá, tentou
remeter, com ajuda de amigos, algumas cartas à sua mulher, que aguardava no Rio
de Janeiro. Mas acabou desaparecendo.
Foi
no dia 24 de agosto que o corpo de Manoel Soares foi encontrado por um popular,
na Ilha das Flores, às margens do Rio Jacuí. O corpo foi encontrado, com sinais
de espancamento, álcool no sangue e as mãos amarradas às costas – a autópsia
indicou que a causa da morte foi afogamento. É aqui que começa a segunda parte
do relato: a árdua busca pela verdade sobre a morte do sargento.
Betinha
compareceu em Porto Alegre para reconhecer o corpo e participar do enterro do
marido, que foi concorrido. O caso, amplamente coberto pela imprensa da época,
acabou nas mãos do promotor Paulo Cláudio Tovo, que viu o caso sofrer
restrições por parte das autoridades. Outro personagem que procurou dar seu
apoio a Betinha foi o jornalista e radialista Dilamar Machado. A partir desse
ponto, inicia um verdadeiro jogo, tanto para apurar a verdade dos fatos como
para atrapalhar a apuração. Várias pessoas acabaram responsabilizadas, mas
ninguém foi punido. Houve muitos depoimentos contraditórios, muitas apurações
de fatos, desvios de opinião, restrições. As autoridades tentaram convencer a
opinião pública que Manoel Soares foi morto por comunistas. O DOPS tentou até sondar
Betinha, enquanto ele próprio era questionado sobre a existência, nunca
comprovada, de um “DOPS dentro do DOPS”, um “Dopinho”. Edu Rodrigues procura
proteção junto às autoridades, tão logo foi apontada sua participação no caso,
mas não conseguiu.
A
investigação posterior acaba concluindo que Manoel Soares havia sido morto
durante uma sessão de tortura por parte dos encarregados pelo DOPS. Não se sabe
ao certo as circunstâncias de sua morte, apenas especulações – Rafael
Guimaraens inclui um capítulo onde imagina como devem ter sido as últimas horas
do sargento. Não se sabe se Manoel foi jogado no rio Jacuí ou se ele se jogou;
se injetaram álcool nele ou se o embriagaram, a fim de tentar arrancar uma
confissão. Não se tem certeza se Manoel Soares foi solto da Ilha do Presídio,
ou se o “caldo” que ele teria recebido foi na sede do DOPS.
Mas,
no final das contas, como na maioria das histórias passadas durante a Ditadura
Militar Brasileira, o Caso das Mãos Amarradas não teve final feliz para seus
envolvidos. E não deve ter sido fácil para Guimaraens reconstituir o caso. Mas
ele conseguiu fazê-lo, na medida para que o leitor também se indigne.
Hoje,
existe um monumento em Porto Alegre para lembrar do caso, uma escultura alusiva
ao “Caso das Mãos Amarradas”, um pequeno símbolo da necessidade da busca pela
verdade de qualquer fato, tão difícil como hoje está sendo.
Para
encerrar, nós agora iremos retroceder no tempo: voltaremos para a Porto Alegre
de um século XIX “alternativo”, através de mais duas páginas de minha HQ
folhetinesca, “O Açougueiro”. Hoje, só consegui produzir duas páginas, apesar
do tempo que dispus – sei, havia dito na postagem anterior que seriam mais
páginas. É que ainda não superei a situação difícil pela qual estou passando,
por isso está difícil manter a concentração em qualquer coisa...
Na
próxima postagem, tentaremos ser mais otimistas. Na próxima postagem onde
falarei de novo livro de Rafael Guimaraens, eu tentarei ser mais otimista.
Aguardem.
Até
mais!
Um comentário:
MINHA NOSSA! Eu tô muito tenso com O Açougueiro!!
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