terça-feira, 24 de maio de 2016

Livro: CARLOTA JOAQUINA - A RAINHA DEVASSA

Olá.
Hoje, volto a falar de livro. Hoje, volto a falar de História do Brasil. Hoje, volto a falar do “tempo do Rei”, ou melhor, da época da estada da Família Real ao Brasil (1808 – 1821). Hoje, volto a falar de Carlota Joaquina, a princesa / rainha que odiava nossa terra.
Mas, hoje, escolhi um romance. Uma narrativa construída a partir de fatos reais, de um autor que outrora tinha sua importância, mas, hoje, é bem pouco lembrado.
Hoje, então, falamos de CARLOTA JOAQUINA – A RAINHA DEVASSA, de João Felício dos Santos.

O CRONISTA
CARLOTA JOAQUINA – A RAINHA DEVASSA foi publicado, originalmente, em 1968. E seu autor, o carioca João Felício dos Santos (1911 – 1989), é um especialista em História Brasileira, embora tenha preferido externa-la na forma de ficção – ou melhor, de romances históricos apoiados em ampla pesquisa. Além de escritor e pesquisador (sobrinho do renomado historiador Joaquim Felício dos Santos), também foi jornalista, publicitário, roteirista de cinema e compositor.
Para caracterizar direito o homem, faço uso das palavras do jornalista Euclides Amaral, que publicou o seguinte perfil biográfico de João Felício dos Santos no site Baixada Fácil (www.baixadafacil.com.br):
O polivalente João Felício dos Santos

João Felício dos Santos nasceu na cidade de Mendes, no Rio de Janeiro, em 14 de março de 1911.
Filho do engenheiro e jornalista João Felício dos Santos e de Amanda Felício dos Santos, sobrinha do maestro Leopoldo Miguez.
Polivalente, atuou como topógrafo, jornalista, publicitário, carnavalesco, autor de livros infantis, romancista-historiador, poeta, letrista e ator.
Seu primeiro livro, “Palmeira Real” (poesias), foi publicado em 1934, quando tinha apenas 23 anos de idade. Logo depois viria a dar início aos seus romance-históricos, tendo em vista sua profissão de topógrafo do Ministério de Viações e Obras do governo que o levou aos confins do Nordeste. Como um Euclides da Cunha contemporâneo, ele ficaria do lado não-oficial da história, perfilando em seus romances personalidades como Ganga-Zumba, Anita Garibaldi, Xica da Silva, João Abade (de Guerra dos Canudos), Carlota Joaquina e Domingos Calabar (em Major Calabar), personas muitas das vezes “não grata” à história oficial e por isso execrados dos livros didáticos.
Autor de uma obra, principalmente centrada no romance-histórico, publicou em vida os seguintes livros: "Palmeira Real" (poesias/1934); "O pântano também reflete estrelas" (romance/1949); "João Bola" (infantil/1956); "João Abade" (romance/1958); "Major Calabar" (romance/1960); "Ganga Zumba” (romance/1962 - com ilustrações de Carybé); "Cristo de lama" (romance/1964); "A Menina e o Navio" (infantil/1964); "Canto Geral das Minas de Goytacazes" (poesias/1965); "Zag, Zeg, Zig no espaço" (infantil/1967); "Carlota Joaquina, a Rainha Devassa" (romance/1968); "Ataíde, azul e vermelho" (romance/1969); "Do Ipiranga à Transamazônica" (infantil/1972); "O Doquinha" (infantil/1973); "A Marca e o Logotipo Brasileiros" (livro técnico/1974); "Nico Piá" (infantil/1975); "Xica da Silva" (romance/1976); "Os Trilhos" (romance/1976); "A Guerrilheira - O Romance da vida de Anita Garibaldi" (romance/1979); "Benedita Torreão da Sangria Desatada" (1983) e "Margueira Amarga", romance, em 1985, com ilustrações de Poty.
Em jornalismo trabalhou como Editor Chefe nas publicações Revista Mundo Católico (1955 a 1957); Revista Brasil constrói (1960), Revista Kosmopolita e colaborou com artigos e críticas para o jornais Correio da Manhã, O Globo e Gazeta do Rio.
Escreveu os argumentos de "Cristo de Lama", de Wilson Silva (1966) e de "Parceiros da Noite", de José Medeiros, em 1980. Como ator trabalhou em dois filmes de Cacá Diegues: “Ganga Zumba”, do ano de 1963, baseado em seu romance homônimo e "Xica da Silva”, do ano de 1974, no qual fez o papel de um reverendo. Este talvez seja o único filme de época que gerou um romance. Geralmente um filme de época é baseado em um romance, mas neste caso se deu o contrário, seu romance histórico "Xica da Silva" foi inspirando pelo filme. Por fim, escreveu o roteiro e fez a pesquisa para a fita “Quilombo”, de Cacá Diegues, lançada em 1984 e que teve Gilberto Gil como o autor da trilha sonora, destacando-se ainda o percussionista Reppolho como o principal músico nas gravações da trilha.
Como carnavalesco foi autor de várias sinopses de enredo para blocos carnavalesco e uma escola de samba do Rio de Janeiro, entre eles, “O negro na história do Brasil” – Bloco Carnavalesco Canários de Laranjeiras, em 1970; ”A Virgem Intocável” – Bloco Carnavalesco Canários das Laranjeiras, do ano de 1975; ”A Cidade Verde” – Bloco Carnavalesco Canários das Laranjeiras, em 1978 e ainda o enredo “Adolã, Cidade Mistério”, criado em parceria com José Félix Garcez Neto para a Escola de Samba Imperatriz Leopoldinense no ano de 1985.
Como letrista de música popular compôs o choro “Pranto”, em pareceria com Gadé, logo depois gravado por Rosita Gonzáles; o samba-exaltação “O índio”, com o mesmo parceiro, o músico, um tanto sumido, Gadé, e ainda a toada “Dandara”, esta última em parceria com o desconhecido músico Manoel Brigadeiro.
A vida João Felício dos Santos daria um romance, isto com certeza!
Interessado na verdadeira história do Brasil fez diversas viagens pelos mais distantes rincões de país, às vezes, a serviço do governo e na maioria delas, por conta própria. Sobreviveu a três naufrágios, um duelo, uma queda em poço de elevador e à morte do filho, jovem oficial da FAB que desapareceu com avião e em numa tempestade na Serra do Mar. Acusado de subversão e enquadrado no AI-5, também foi perseguido pelos catedráticos da “História Oficial” por seus romances que davam preferência ao discurso dos excluídos.
Faleceu em 13 de junho de 1989 na cidade do Rio de Janeiro, mas sobreviveu a essa parca-memória nacional através de seus livros. Seus leitores e amigos torcem para que sejam publicados seus trabalhos inéditos, entre os quais “A Força Vermelha” (1987) e o romance “Rotas de Além-Mar” (1988), além de um livro de poesias e roteiros para cinema.

Como deu para ver, João Felício dos Santos não foi pouca coisa na história da Literatura Brasileira – mas são poucas as referências a seus livros nos cursos colegiais de literatura. Ele foi homenageado em 29 de março de 2011 com uma exposição de celebração ao centenário de seu nascimento, na Associação Brasileira de Imprensa.
O escritor também tem seu site oficial! Vejam mais a respeito dele em www.joaofeliciodossantos.com.br.

O OBJETO DE ESTUDOS
Embora tenha dado preferência, em seus romances, a contar a história de determinadas épocas a partir da vida de personagens que basicamente fizeram parte do setor “marginal” da sociedade brasileira, em CARLOTA JOAQUINA – A RAINHA DEVASSA, João Felício dos Santos resolveu focar um de seus romances mais populares em uma figura que dificilmente poderíamos chamar de marginalizada. Pior: que poderíamos, isso sim, chamar de vilã. Mas, a partir da caracterização dessa figura, ele desce até os setores “marginais” – a partir de uma parte, ele caracteriza o todo, no caso, o povo da época em que a figura viveu.
Diversas vezes, neste blog, fiz referências acerca de Carlota Joaquina de Bourbon, a esposa do Rei D. João VI de Portugal. Espanhola, irmã do então rei Fernando VII, casada com o então Príncipe D. João sob procuração, e que na noite de núpcias arrancou um pedaço da orelha do marido – mas, depois, teve nove filhos, mas sabe-se lá quantos eram de fato com D. João. Quando as tropas do imperador francês Napoleão Bonaparte invadiram Portugal, quando este país se recusou a aderir ao Bloqueio Continental contra a Inglaterra, a Família Real portuguesa – Carlota Joaquina incluída, claro – vieram ao Brasil, então maior colônia do Império português. Isso foi em 1808.
Enquanto D. João se preocupava com a modernização da colônia, com a elevação da mesma a Reino, e com os processos que acabariam, sem querer, resultando na Independência do Brasil – levada a cabo por seu filho D. Pedro – Carlota Joaquina estava preocupada com outras coisas. Ela odiava o nosso país, e tinha por maior pretensão se tornar rainha das colônias espanholas na América. Diversas vezes conspirou contra o próprio marido para alcançar tais propósitos. Mas sempre acabou frustrada. Só conseguiu um pouco de paz interior depois que foi embora de volta para Portugal, em 1821 – e, na saída, bateu os sapatos na amurada do navio para tirar a poeira do Brasil dos pés.
Mas não que ela não tenha aproveitado alguma coisa do nosso país. Carlota Joaquina ficou famosa por uma suposta coleção de amantes que teria aqui arranjado. Aliás, no Brasil, ela, por muito tempo, carregou a alcunha de feia, promíscua e ninfomaníaca – como se já não bastasse os títulos de pérfida e conspiradora. Em suma, mulher da pá virada. Hoje, os historiadores contestam essa fama. Feia sim, conspiradora, talvez, mas ninfomaníaca, nem tanto.
Bueno. Já falei, uma vez, do filme da cineasta Carla Camurati onde ela é retratada – e que a classe “pensante” do Brasil odeia. Já falei do célebre livro do jornalista Laurentino Gomes, onde D. Carlota aparece como personagem. Já falei do tardio livro-denúncia escrito por seu ex-secretário, José Presas, onde são revelados alguns podres da ex-patroa. Agora, para completar o rosário, falo do romance de João Felício dos Santos. Talvez apareçam mais pedras nesse rosário, com o tempo, mas o tempo é que vai dizer.

A CRÔNICA
CARLOTA JOAQUINA – A RAINHA DEVASSA, vamos relembrar, foi escrito em 1968 (a capa acima é da edição de 2006, editada pela José Olympio Editora). E, na época em que foi escrito, época do Regime Militar Brasileiro, havia um embate, nos bastidores, entre historiadores “de esquerda” e Governo: este, em defesa de uma história oficial, de heróis e feitos a serem celebrados, conforme o gosto dos militares; e aqueles, em defesa de uma história das classes menos favorecidas, que contestava a ação dos “heróis” decantados pelo Governo – heróis seriam os que lutaram ao lado do povo, pelas causas do povo, não pelas de um país que foi construído para ser usufruído por uns poucos. Entendem?
E, levando em conta a época, ainda prevalecia, na História, a versão de Carlota Joaquina como “rainha devassa”. Pois ela é retratada assim no romance: cheia de flutuações de humor. Hiperativa, com tendência ao masoquismo, cheia de manias, boca-suja, com furores uterinos, logo fazendo coleção de amantes, criando conspirações para tomar o poder da América, se portando de maneira dengosa e até carinhosa mais quando lhes convém, e em boa parte do tempo, hedonista e com gosto para apelidar e maltratar todo mundo, até os criados de confiança. E sempre nutrindo um desprezo pelo Brasil, um país “de negros e de macacos”, na sua opinião. Um retrato, logo, caricato.
Well. O romance estrutura-se em três partes; 165 capítulos, alguns bem curtinhos, de poucas palavras, outros mais longos, de até sete páginas; distribuídos em 434 páginas. A narrativa concentra-se no recorte de tempo entre 1808 e 1821, quando da permanência da Família Real no Brasil – começando por retratá-la nos navios que trouxeram-na à colônia (primeira parte, sem título), depois em sua breve estadia em Salvador, Bahia (segunda parte, Bahia: “A Casca-Grossa”), indo pouco depois para a estadia, pelos próximos treze anos, no Rio de Janeiro (terceira parte, Rio: “Era no tempo do Rei...”), até o retorno para Portugal.
E um dos maiores problemas do romance é o uso de linguagem excessivamente rebuscada, como convinha a um intelectual brasileiro de então. O romance é repleto de palavras e termos que hoje não se usam mais, e não dispõe sequer de um glossário para o leitor menos instruído – prepare um dicionário Aurélio para ter ao lado, se resolver se aventurar. Grande parte do romance é feito de descrições, algumas delas difíceis de entender por causa dos termos difíceis. Mas João Felício se preocupou em descrever em minúcias a época: as condições da viagem ao Brasil, feita às pressas e em condições precárias nos navios; um panorama das cidades de Salvador, onde a Família Real aportou antes, e do Rio de Janeiro, a sede do governo; os hábitos da corte portuguesa que acompanhou a Família Real, corrupta, parasita e que, muitas vezes, nutria um desprezo pelas classes populares e seus costumes “bárbaros”, como o consumo de mandioca; a situação na qual ficou o povo diante dos P.R.s (o popular “ponha-se na rua”) nas portas das melhores casas; os festejos, populares e/ou em honra ao Rei; os enterros; as condições de vida dos negros, livres ou escravos... enfim. Talvez sejamos nós, a atual geração, que não estejamos tão bem educados assim – as reformas na educação nos anos 1990 e 2000 realmente não nos fizeram muito bem.
O tom que João Felício dos Santos adota para o romance é o de comédia farsesca, grotesca, com algumas piadas desgastadas pelo tempo – e, na realidade, a história reconstituída revela mesmo que a época foi uma verdadeira comédia grotesca, com pitadinhas de drama. Teria Carla Camurati realmente se inspirado no romance para compor o tom de seu filme Carlota Joaquina – Princesa do Brasil?
Quanto a D. João, o imperador, ele também tem uma imagem meio caricata nesse romance. Gordo, comilão, bonachão, descuidado com a higiene pessoal (tanto que passa boa parte do tempo incomodado por conta de um inseto em sua perna), sempre pontuando suas frases com “hein? Hein?”. Mas não tão palerma quanto aparece no filme. Ele gostou do Brasil – tanto que, no fim do romance, reluta muito em sair daqui para resolver seus problemas em Portugal – e demonstra gostar muito de Carlota Joaquina. Mas está sempre pronto para pregar peças e frustrar os planos da mulher, que o despreza.
Praticamente todos os personagens que os livros de História citam sobre o período aparecem. Além de D. João e de Carlota Joaquina, aparecem, entre outros, entre breves ou mais amplas aparições: a rainha-mãe, D. Maria, em seus surtos de loucura que a levariam à morte, desde a viagem; o secretário catalão-argentino José Presas (sim, aquele do livro-denúncia), fazendo também as vezes de amante; o pândego Francisco Gomes, o Chalaça, melhor amigo do príncipe D. Pedro e sempre disposto a fazer denúncias em troca de benesses, ora para D. Carlota, ora para D. João; o próprio D. Pedro, futuro D. Pedro I do Brasil; o cronista acidental Joaquim dos Santos Marrocos, o primeiro bibliotecário do Brasil; o jornalista Hipólito da Costa, que imprime seu jornal crítico do governo em Londres; e alguns dos assessores do Príncipe Regente, como o barbeiro e confidente Lobato e o nobre Dom Rodrigo Coutinho, o conde de Linhares, pau-pra-toda-obra do governo.
Outros personagens, possivelmente inventados, também têm seus momentos de ação no romance, como as damas de companhia de Carlota Joaquina – destaque para a muito cortejada Manuela Pessegueiro – e o escravo Filisbino, que trabalhava no sítio de Botafogo onde D. Carlota instalou-se, e que se torna um objeto de desejo consumado por parte da Princesa. Ah: o sítio pertencia a João Fernandes, um descendente da “escrava-rainha” do Tijuco, Xica da Silva (dessa aí, falamos numa outra oportunidade, dada a profundidade dessa personagem).
São vários os episódios reais que João Felício romanceia a respeito de D. Carlota. Entre eles: a encrenca que ela acaba arranjando com um embaixador dos Estados Unidos porque este se recusou a saudá-la na rua; os planos frustrados para fomentar uma revolução na Argentina, a fim de fundar seu reino – entre eles, penhorar as próprias joias para financiar os “revolucionários”, ou viajar ela mesma para a região do Prata (ambos os planos acabam frustrados por D. João e seus assessores: as joias enviadas para a Argentina acabam substituídas por imitações; e D. Carlota, ao invés de ir para o porto pegar o navio para a Argentina, acaba levada para o Convento da Ajuda, onde acaba enclausurada por alguns dias); o envolvimento dela no crime contra Gertrudes Pedra, esposa de seu suposto amante Fernando Carneiro Leão, o diretor do Banco do Brasil. Tal crime não seria apurado; D. João decide punir a “criminosa” à sua maneira.
João Felício também não esquece os episódios históricos mais conhecidos. A Abertura dos Portos às Nações Amigas, a Missão Artística Francesa, o falecimento da Rainha D. Maria, as reformas no Rio de Janeiro, entre elas a fundação do Jardim Botânico...
Bem, é uma história que praticamente todo mundo que não fugiu da escola já conhece. O diferencial está mesmo na forma como a história é narrada, afastada da história “técnica” dos livros convencionais – só descritivismo, e em linguagem rebuscada e afastada do dia-a-dia brasileiro. CARLOTA JOAQUINA – A RAINHA DEVASSA tem humor e didatismo aliados à História. OK, também em linguagem rebuscada e afastada do dia-a-dia brasileiro. Mas garante um entretenimento por algumas horas.
O crítico Hermilo Borba Filho escreve o texto de orelha.
Não é difícil encontrar o volume nas bibliotecas – basta um pouco de boa vontade para visitar a biblioteca de sua cidade, e um pouco mais para sair das redes sociais alienantes e enfiar um pouco de cultura em sua cabeça. Apenas isso.

PARA ENCERRAR...
...um trechinho mais de minha HQ folhetinesca e diferente, O Açougueiro.
Com estas três páginas, a HQ chega a 50 páginas – e ainda não terminou. A publicação de cada trecho tem uma periodicidade por hora imprevisível – e só o futuro dirá acerca de uma versão impressa dessas páginas, que, até o momento, nem eu sei dizer onde vai dar. Deixem sua opinião, se estão apreciando ou não este formato diferenciado de HQ.
Em breve, mais trechos de O Açougueiro para vocês.

Até mais!

Nenhum comentário: