Olá.
Hoje,
vou falar de livro. Poderia comentar algo sobre a situação política de agora,
oportunamente, mas prefiro focar-me em outros assuntos. Não pretendo fazer
deste blog um porta-voz de uma ideologia qualquer, dessas que divide o país.
Busco a isenção na parte informativa, não ter uma posição clara, visando assim
agradar um maior número de leitores entre meus 17 leitores.
Hoje,
vamos voltar ao passado. Hoje, vamos falar do tempo em que o jornalismo parecia
uma atividade mais emocionante que agora. O tema do livro tem muito a ver com o
que expus no parágrafo anterior.
O
livro de hoje se chama CORREIO DO POVO – A PRIMEIRA SEMANA DE UM JORNAL
CENTENÁRIO, de Juremir Machado da Silva.
O JORNAL
O
citado livro, publicado pela editora Sulina de Porto Alegre, RS, é bem recente,
diga-se de passagem. Foi lançado em outubro de 2015, para coincidir com uma
data oportuna: o jornal Correio do Povo,
de Porto Alegre, RS, um dos mais tradicionais periódicos do Rio Grande do Sul,
completava, naquele ano, 120 anos de fundação.
O Correio do Povo é tido como um dos
jornais mais completos que existem, em matéria de informação – muito se devendo
a isso o fato de o jornal ter uma diagramação que privilegia uma maior
quantidade de informações em pequeno espaço. Bem, quem mora no Rio Grande do
Sul sabe de qual jornal estou falando.
Mas
uma característica se mantém no Correio
do Povo desde sua fundação: sempre procurou ser um jornal informativo,
literário e comercial. Ao contrário de tantos veículos de comunicação que vemos
por aí, ainda mais nesses tempos de “vai sair o impeachment” e “não vai ter
golpe”, o Correio do Povo tem por
filosofia trazer a informação ao leitor, sem adotar – na maioria das vezes –
uma posição clara, um partido na situação. O Correio do Povo poucas vezes serviu de porta-voz de um determinado
grupo, buscava em grande parte do tempo a isenção, o apartidarismo, a
informação acima da opinião, abrindo espaço para ambos os lados exporem seus
argumentos e deixar que o leitor tire suas conclusões, ao invés de entregar uma
opinião pronta e induzir o leitor a assumir essa ou aquela posição,
gratuitamente. Por isso, conseguiu se firmar como um patrimônio gaúcho, pela
adesão popular.
O Correio do Povo foi fundado pelo
jornalista Francisco Antônio Vieira Caldas Júnior, em 1895. E poucas vezes o jornal
correu risco de acabar. A primeira vez foi após a morte de Caldas Júnior, em
1913. Assumido pela esposa de Caldas Júnior, Dolores Alcaraz Caldas, enfrentou
dificuldades financeiras até que o filho de Caldas Júnior, Breno Caldas,
assumiu a direção, em 1935, e fez o jornal se expandir pelos próximos cinquenta
anos em que ficou à frente da publicação – e enfrentar algumas polêmicas, às
quais conseguiu sair incólume. Enfrentou a censura diversas vezes – o maior
episódio foi em 20 de setembro de 1972, quando o jornal foi apreendido devido a
uma determinação do governo militar de então. Mudou de endereço – do edifício
alugado na Rua dos Andradas, mudou-se, em 1946, para a atual sede, no edifício
Hudson, na antiga rua Paissandu, hoje Rua Caldas Júnior. Estendeu suas
atividades para o rádio e para a TV – o Grupo Caldas Júnior também era
proprietário da Rádio Guaíba e da TV Guaíba. E ainda revelou, em suas páginas,
alguns dos grandes nomes da literatura gaúcha, como Mário Quintana, que manteve
uma seção no jornal de 1953 a 1994.
Mas
o maior risco de fechamento foi no período entre 16 de junho de 1984 e 31 de
agosto de 1986, quando, devido a dificuldades financeiras, ele teve de
interromper sua circulação, e sair das mãos da família Caldas, para, sob novos
donos – o empresário Renato Bastos Ribeiro – ser retomado. Aí, passou por
inovações tecnológicas, e mudou até o formato, hoje tamanho tabloide. Hoje, o Correio do Povo, bem como a rádio e a TV
Guaíba, fazem parte do Grupo Record,
do pastor Edir Macedo – desde 2007.
O REDATOR INTERINO
Well.
Para contar uma parte da história do Correio
do Povo, quem melhor que um de seus funcionários? Juremir Machado da Silva,
nascido em Santana do Livramento, RS, em 1962, mantém há anos uma coluna opinativa
diária no Correio do Povo. Mas não é
só por isso.
O
escritor e jornalista é pesquisador do CNPq, doutor em Sociologia pela
Sorbonne, da França, e professor na PUCRS. Também já trabalhou, de 1993 a 1995,
no jornal Zero Hora, do grupo RBS, e
apresenta um programa na Rádio Guaíba. Já tem mais de 30 livros publicados
desde 1991, entre reportagens, romances, contos, relatos históricos. Alguns dos
mais importantes são: Getúlio (editora
Record, 2004), O que pesquisar quer dizer
(Sulina, 2010), História Regional da
Infâmia (L&PM, 2010), Vozes da
Legalidade (Sulina, 2011), A
Sociedade Midíocre (Sulina, 2012), A
Orquídea e o Serial-Killer (L&PM, 2012), Jango: a vida e a morte no exílio (L&PM, 2013) e 1964 golpe midiático-civil-militar (Sulina,
2014). CORREIO DO POVO é seu 32º livro.
Ele
também mantém um blog com suas colunas diárias no jornal: www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado.
O LIVRO SOBRE O JORNAL
Através
deste livro, ao contar um momento da história do Correio do Povo, Juremir Machado promove um exercício de história
das mentalidades do final do século XIX, de exercício de fazer um todo a partir
de uma parte, segundo os preceitos do francês Edgar Morin (segundo o qual a
parte estaria no todo, o todo estaria em uma parte), enfim, contar um episódio
da História de uma maneira diferente e acessível.
Bão.
O momento escolhido por Juremir Machado, para contar a história do Correio do Povo, foi a sua primeira
semana de publicação, entre os dias 1º e 6 de outubro de 1895. Inicialmente, o
jornal saía de terça-feira a domingo, só mais tarde se estabeleceria como
diário. Com quatro páginas, com os temas dispostos em colunas.
O Correio do Povo, então, começou a
circular em 1º de outubro de 1895, sob a liderança de Caldas Júnior (o homem
cujo retrato ilustra a capa do livro), natural do estado do Sergipe, e então
com 26 anos de idade, e tendo a assessoria de José Paulino de Azurenha, o
primeiro jornalista negro do Rio Grande do Sul, e de Mário Totta, futuro médico
e poeta.
O Correio do Povo se propunha, naquele
momento, a ser um jornal diferente de todos os outros que circulavam no Rio
Grande do Sul no final do século XIX. Pode se dizer que o Correio do Povo inaugurou, no jornalismo gaúcho, o século XX, uma
era de modernidade.
O
contexto da época era de efervescência política. A escravidão havia sido
abolida em 1888, praticamente encerrando, segundo Juremir Machado, o breve
século XIX no Brasil (iniciado em 1808, com a vinda da Família Real ao Brasil);
a República havia sido proclamada em 1889, pondo fim ao regime monárquico; no
Rio Grande do Sul, a adoção da ideologia positivista entre os políticos gaúchos
e uma intensa rixa política resultou na sangrenta Revolução Federalista, que
foi de 1891 a agosto de 1895 – portanto, havia terminado um mês e meio antes do
Correio do Povo aparecer.
O
jornalismo no Rio Grande do Sul estava fortemente marcado pela imprensa
partidária. Praticamente todos os jornais que circulavam estavam a favor de uma
determinada ideologia – oposição ou adesão ao governo vigente. O jornalismo
também era visto como uma forma de ingresso na política – vários políticos
importantes da época foram, em algum momento, jornalistas, colaborando em
jornais de outrem ou editando os próprios jornais. Desse modo, o Correio do Povo veio com uma nova
proposta: tornar-se um jornal noticioso, literário e comercial, visando tão
somente a informação, de preferência, acessível a um maior número de leitores –
e olha que, naquele tempo, ainda eram poucos os brasileiros que sabiam ler e
escrever, a educação ainda era privilégio das elites e das classes médias. Essa
proposta estava explícita no editorial escrito por Caldas Júnior, publicado na
primeira página do primeiro número.
Mas
não que Caldas Júnior não estivesse totalmente isento de adesão a um grupo: ele
ainda estava marcado pela morte do pai, Francisco Antônio Caldas, executado em
1894 em Santa Catarina, a mando do militar Moreira César. Francisco Antônio
Caldas Sênior era opositor do governo do presidente Floriano Peixoto (de quem
Moreira César era homem de confiança) e do governador do Rio Grande do Sul,
Júlio de Castilhos; preso, foi exilado para Santa Catarina, onde foi preso e
executado. Mas castigo acaba vindo a cavalo: mais tarde, Moreira César acabaria
perecendo na liderança da primeira expedição contra o Arraial de Canudos, na
Bahia, em 1895. Floriano Peixoto já não era mais o presidente brasileiro – quem
governava o Brasil, naquele momento, era o civil Prudente de Morais (que,
aliás, foi homenageado na capa da quarta edição do Correio do Povo). Mas Júlio de Castilhos ainda era o governador do
Rio Grande do Sul. Ao fundar o Correio do
Povo, Caldas Júnior ainda estaria guardando todos os seus rancores contra
os homens que acabaram com seu pai? Teria sido essa perda o motivo da busca da
isenção partidária de seu jornal?
Bão.
Nos quinze capítulos do livro (são 176 páginas ao todo), Juremir Machado
analisa praticamente todo o conteúdo do jornal nesses seis primeiros dias de
vida. Analisa os anúncios, tanto de produtos utilitários (abusando dos termos
em francês, a língua “sofisticada” da época) como de medicamentos e de médicos
– e revela que havia uma pauta subliminar de sexo naquela época, expressa nos
anúncios de medicamentos contra doenças venéreas; analisa as colunas
humorísticas, que revelam alguns pecadilhos da sociedade da época – e tem mais
sexo subliminar nesta parte; analisa as primeiras reportagens publicadas – a
primeiríssima teria sido a cobertura, feita por Mário Totta, do caso de
empastelamento (depredação) da redação de um jornal das proximidades; analisa
as primeiras promoções para os assinantes, de oferta de livros que, na época,
eram populares entre leitores, mas hoje estão praticamente esquecidos; analisa
algumas colunas falando sobre o próprio jornalismo; analisa o primeiro romance
de folhetim aí publicado, Os Farrapos, de
Oliveira Belo, que, apesar da linguagem rebuscada, representava a busca pela
identidade histórica do Rio Grande do Sul; analisa seu primeiro grande avanço
para o jornalismo da época, a seção de telegramas, através do qual publica
reportagens de outros países e de outras partes do Brasil em tempo quase real –
só mais tarde é que o jornal ganharia novos aparelhos de impressão que
aumentariam a tiragem do mesmo, fazendo o Correio
do Povo alcançar um pico de vendas de 10 mil exemplares e fazer jus ao
slogan “o jornal de maior circulação no Rio Grande do Sul”.
O
livro reproduz ainda, como ilustrações, reproduções das folhas de rosto das
seis primeiras edições do jornal. Os verdadeiros retratos de uma época.
E
bom inclusive para gente como eu, historiador. Historiadores podem fazer um
retrato de uma época analisando edições antigas de jornal – ainda mais o Correio do Povo, que atravessou o século
XX forte e incólume, praticamente. Eu mesmo, quando fiz pesquisas para a
faculdade, tive a oportunidade de analisar edições antigas do Correio do Povo, inclusive as do período
de setembro a novembro de 1918, quando o jornal teve notícias, sobre a epidemia
de gripe espanhola, censuradas – várias notícias falando da doença saíram com
grandes espaços em branco nas partes “cortadas”!
Só
deem um desconto ao estilo de escrita de Juremir Machado, em vários trechos em
um texto apaixonado e comprometido a falar bem do jornal, minimizar os defeitos
do objeto de estudo – lembrem-se, ele trabalha para o Correio do Povo. Bem, mas é mérito do próprio Correio do Povo enquanto veículo de informação confiável.
De
todo modo, devia ser muito mais desafiador, estressante e talvez até divertido
ser jornalista entre os séculos XIX e XX, quando não haviam as facilidades de
hoje: o repórter tinha de datilografar toda a notícia, entregar as laudas ao
tipógrafo, que tinha de fazer a diagramação do jornal quase manualmente
(inicialmente montando a prancha de impressão letrinha por letrinha, depois usando
meios mecânicos que diminuíam o tempo do serviço); o serviço de telégrafo –
mensagens transmitidas através de sinais elétricos baseados em pontos e traços
– equivalia à internet de hoje, mas as notícias recebidas naquele dia só podiam
ser publicadas na edição do dia seguinte; por consequência, o fechamento da edição
do dia tomava muito tempo, e, não sei dizer ao certo se era como hoje em dia,
mas a impressora funcionava de madrugada, para que o jornal fosse entregue de
manhã bem cedo aos assinantes e vendido pelos garotos que apregoavam as
notícias aos gritos. Na parte ideológica, havia um comprometimento muito grande
por parte dos jornalistas com esse ou aquele partido – diferente de hoje, que o
aceitável é ser isento – e, por consequência, os jornais tinham, além da função
informativa, outras utilidades à sociedade: forrar o chão de casas que serão
pintadas, embrulhar peixe e carne no açougue, fazer bandeirinhas para festas de
São João... Para os historiadores, é fundamental conservar as edições antigas
de jornais. Acho que vocês me entendem.
PARA ENCERRAR...
...já
que falamos de Porto Alegre, do Rio Grande do Sul do século XIX, e de um
período da história, é claro que vou deixar aqui mais algumas páginas de minha
HQ folhetinesca, O Açougueiro.
Por
conta de alguns compromissos extras, só consegui fazer, para esta ocasião, duas
páginas. E a trama está paralisada, reconheço. Mas pretendo corrigir estas
distorções brevemente. Até lá, continuem acompanhando.
Em breve, o folhetim continuará, acompanhando mais postagens "culturais" deste blog.
Até
mais!
Nenhum comentário:
Postar um comentário