Olá.
Estamos,
no momento em que escrevo, em época de Carnaval, essa festa que faz o Brasil
esquecer os problemas pelos quais estamos passando por causa dessa folia da
Copa e da política. Época de Carnaval evoca prazeres da carne, sexo e tudo mais
relacionado – e, logo, é apropriado ao tema que hoje vou abordar. Mas nada a
ver com a alegria da festa.
Hoje
vou falar de livro – de quadrinhos. De autor estrangeiro. Mas antes, vou
apresentar o autor para vocês: Chester Brown.
QUEM?
Apesar
de ser pouco conhecido no Brasil, Chester Brown é um autor reconhecidíssimo no
seu país de origem, o Canadá. Considerado um dos monstros sagrados das HQ
canadenses.
Geralmente,
os quadrinhistas canadenses são reconhecidos mundialmente quando seguem
carreira no país vizinho, os Estados Unidos, que são os principais “ditadores
de tendências” no quadrinho mundial (posto que atualmente dividem com os
japoneses). Logo, os principais autores de HQ nascidos no Canadá foram os que
fizeram carreira nos EUA – é o caso de Harold Foster (Tarzan e Príncipe Valente)
e Todd McFarlane (Spawn). São raros
os que se consagram dentro do país e ganham o mundo sem passar pelos EUA – é o
caso de Bryan Lee O’Malley (Scott Pilgrim).
Bão.
Chester Brown nasceu em Montreal, no Canadá, em 1960. Sua primeira tira de Q
foi publicada em 1972, no jornal The St.
Lawrence Sun. Porém, ele só começou a ganhar reconhecimento a partir de
1983, com a publicação da série independente Yummy Fur, vendida na forma de fanzines xerocados, numa esquina de
Toronto, a 25 centavos de dólar. Em 1986, essa mesma série começou a ser
publicada em revistas, e se tornou uma das mais duradouras séries de HQ
independentes.
Outra
série conhecida de Brown é Ed the Happy Clown, publicada a partir de 1989. Pouco depois, Brown começou a publicar álbuns, como o
autobiográfico The Playboy (1992), Never Like You (1994), Underwater (1994), And the Little Man (1998), Louis
Riel, biografia de um líder anarquista de seu país do século XIX, e
considerado sua obra-prima (2003) e Paying
for It (2010).
Brown
já ganhou quatro prêmios Harvey e desde 2011 faz parte do Canadian Comic Book
Creator Hall ofFame.
PAYING
FOR IT
Como
eu disse, a obra de Chester Brown é pouco conhecida no Brasil. Só dois álbuns
seus foram traduzidos aqui: The Playboy
(lançado pela Conrad) e Paying for It
(lançado pela Martins Fontes). Ambos de caráter autobiográfico.
The Playboy
trata da relação do autor com a revista homônima na adolescência. Já Paying for It, que por aqui recebeu o
título de PAGANDO POR SEXO, bem, é deste que eu vou falar.
O
livro foi indicação do meu colega blogueiro Rogério Martins, o Nights Yoru,
autor do blog Nightsy the Comics (lembram que eu já fiz tiras com o personagem
dele, o Nightsy? Se não conhecem, cliquem no marcador “Nightsy”, ao lado), que
ultimamente anda parado.
Bão,
como já disse, PAGANDO POR SEXO foi lançado pela editora Martins Fontes, em
2012. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. Com introdução do grande
quadrinhista underground Robert Crumb. 284 páginas. E tem caráter autobiográfico.
O
título original pode ser traduzido, literalmente, por “Pagando por Aquilo”,
dando um caráter meio jocoso ao tema. A tradução brasileira, felizmente, optou
por traduzir o título assim, abordando diretamente o tema, com base nas
observações do próprio autor no posfácio do volume.
O
tema do livro é polêmico: trata da relação do autor com prostitutas, algo que a
maioria das pessoas não gostaria de admitir nem para os melhores amigos. Mais
polêmico que o tema, é o posicionamento do autor a respeito dele. Chester Brown
se declara contra o amor romântico e as relações monogâmicas – motivado, claro,
por questões pessoais. Mas o tema da prostituição é tratado sem moralismos ou
falsos juízos de valor. E esse é o grande valor do álbum: ele defende a atividade
das “profissionais do sexo” sem hipocrisia ou moralismos, de maneira franca e
sincera, bem-resolvida. Como ele viveu muito tempo contratando os serviços de
“profissionais do sexo”, ele entende do assunto, e ainda sustenta as teses
apresentadas com uma farta e confiável bibliografia.
O
livro é em quadrinhos. Máximo de oito quadros iguais por página, mínimo de um,
com desenhos mínimos, num traço “redondinho” e em linha-clara, e personagens
praticamente sem expressões faciais. O próprio Brown, no máximo, só abre um
pouquinho a boca para falar ou aparece sem óculos – o próprio autor, segundo a
foto que ele publica ao fim do álbum, tem a mesma expressão robótica. É difícil
acreditar, em alguns momentos, que Brown desenhou cada quadro, um por um,
incluindo as repetições dos detalhes de cenários e personagens, sem usar
recursos de computador.
E,
em se tratando de uma HQ autobiográfica, não há grandes lances de ação. O ritmo
da HQ é lento, como em um filme dramático, o que pode chatear o leitor. Poucos
quadros apresentam mais de um balão de fala. E, nas transições de cena entre os
capítulos, Brown usa o recurso de um quadro preto, só com uma caixa de texto,
marcando a transição entre uma cena e outra. É como se víssemos o storyboard de
um filme dramático.
Como
o título sugere, há cenas de nudez e sexo semi-explícito, mas não são gratuitas
nem estimulantes. O tom da história é de pura melancolia. Não se trata de uma
HQ alegre, e nem parece pornográfica. Na verdade, nem é pornográfica. Fala de
sexo, mas com uma franqueza que nenhuma outra pessoa seria capaz de falar. Nada
de erotismo gratuito. Brown mostra que é um cara resolvido, feliz em pagar pela
própria felicidade com o próprio dinheiro (e, mesmo sendo cartunista, ele não
deve ganhar mal), inimigo fidagal dos falsos moralismos e dos valores
ultrapassados. Quer dizer, na opinião dele, o amor romântico não vale a pena –
se é para prender uma pessoa na sua vida com os laços defendidos pela sociedade
moralista, então não vale mesmo a pena. Como naquela música do Raul Seixas, “A
Maçã”.
Ora.
Mas fica a cargo do leitor decidir se concorda com Brown ou não. Até porque os
argumentos dele contra o amor romântico e em defesa da atividade das
prostitutas são maduros, bem-fundamentados e sustentados com bibliografia. Ao
final do livro, Brown dedica várias páginas para explicar como funciona a
atividade das prostitutas, argumentos em favor da regulamentação da atividade,
rebater opiniões contrárias à atividade das prostitutas... e até mesmo notas
sobre algumas sequências da HQ, revelações dos bastidores da elaboração da
mesma e as opiniões de conhecidos de Brown acerca de trechos da obra. Bem, não
se trata de um livro fácil de explicar. Só lendo para tirar suas opiniões.
A
TRAMA
Como
eu disse, a obra é autobiográfica, e engloba os anos entre 1996 a 2010.
A
história começa em junho de 1996, quando Brown, então firme como cartunista da
grande imprensa e morando na casa da então namorada, Sook-Yin, recebe a notícia
de que esta se apaixonou por outro. Ambos, no entanto, mantém uma relação de
amizade e confiança mútuas, embora o “compromisso” entre eles já tenha acabado.
Brown não tem problemas em dividir suas inquietações ou opiniões sobre o amor,
a convivência e tudo o mais com as pessoas que lhe são próximas: Sook-Yin, a
ex-namorada, Louise, e os amigos, os colegas de profissão Joe e Seth.
Sook-Yin
chega até a chamar o novo namorado para dividir a casa com ela e Brown, mas
depois ambos brigam. Brown nem se importa: desistiu de manter um relacionamento
sério com quem quer que fosse. Mas se ressente da falta de sexo na sua vida.
Após a ida a uma convenção de HQ, em agosto de 1998, onde uma garota que posara
para a Playboy estava presente, Brown
tem uma ideia: compensar a falta de sexo contratando o serviço de uma
prostituta.
A
princípio, Brown pensa em requisitar uma prostituta da rua; depois, com medo
das possíveis reações geradas por se contratar esse tipo de atividade, como
chamar a atenção da polícia, toma várias precauções ao contratar seu primeiro
serviço: se informa a respeito da “etiqueta” da prostituição, resolve
requisitar uma garota que atende em local próprio, marca o encontro ligando de
telefone público. E sua primeira experiência, em 26 de março de 1999, com
“Carla”, acaba sendo bem-sucedida.
A
partir daí, Brown resolve experimentar o sexo pago com várias garotas
diferentes. Em verdade, ele dedica um capítulo do livro para cada garota
contratada. Ah: as prostitutas que aparecem na história tem os nomes trocados,
quase nunca tem os rostos mostrados, e aparecem todas com o cabelo preto,
embora, algumas na verdade, sejam loiras, naturais ou não – uma medida de Brown
para proteger a identidade delas.
Com
algumas, Brown costuma conversar bastante após o sexo, manter algum nível de
intimidade – e as garotas revelam a ele anseios da profissão, verdades sobre
sua vida e inquietações, como o fato de as famílias souberem sobre seu “ofício”.
Inicialmente, Brown usa nome falso para contratar os serviços, mas, depois que
se sente mais relaxado e confiante, Brown usa seu nome verdadeiro, e chega até
a mostrar às garotas amostras de seu trabalho com HQ. Surgem garotas com
diversos tipos de corpo: garotas com seios grandes (como “Angelina” e “Alexis”),
com seios pequenos, aparentando serem mais novas (como “Anne”), mais velhas,
garotas simpáticas, outras nem tanto (como “Wendy”)... Muitas dessas garotas,
ele vê mais de uma vez, como “Carla”, “Anne” e “Denise”, que se torna a mais
“fiel”. Em certo momento, Brown passa a solicitar garotas através de sites de
avaliações na internet. Tudo ilustrado com cenas de sexo oral e anal, mas como
eu disse, pouco estimulantes, são parte do contexto, pura e simplesmente.
Os
amigos de Brown, no fundo, se escandalizam com as atitudes do autor, mas
procuram não aparentar, e até aceitam numa boa o que ele faz.
O
clímax do livro se dá em maio de 2001, quando Sook-Yin arranja outro namorado,
e pede que Brown procure outro lugar para morar. Esse fato deixa Brown
deprimido por um período, pois o tempo que ele usa para pensar sobre o assunto
é dedicado a repensar seu relacionamento com a ex-namorada. Mas, aos poucos,
vai aceitando a ideia de ter seu próprio apartamento e de, finalmente, poder
receber prostitutas em domicílio. A primeira a ir a seu novo apartamento é
“Jenna”.
Brown
também chega a polemizar com Seth a respeito da regulamentação da atividade das
prostitutas. Seth tem posições mais “conservadoras”, mais “moralistas”, e
defende o amor romântico, aio contrário de Brown.
Ah,
sim: Brown, por sorte, nunca foi enquadrado pela polícia, nem cometeu nenhum
ato ilegal. Ele teve a precaução de não se relacionar com menores de idade, nem
procurar em bordéis clandestinos. As garotas que não lhe agradavam,
simplesmente não recebiam gorjeta, nem eram mais vistas após a primeira vez. Brown
procura ter um profundo respeito pelas mulheres, nunca tratando as prostitutas
como objetos. O máximo de agressão era se alguma mulher reclamasse se ele
pausava na hora da transa, ou se ela reclamasse de dor durante a penetração.
Muitos
leitores podem encontrar, embutidas na trama, lições de “etiqueta” na hora de
solicitar serviços de prostituição, como o momento certo de dar gorjetas às
prostitutas, o melhor modo de deixar o dinheiro do pagamento à vista das
garotas ou solicitar os serviços a domicílio. O assunto é polêmico e ainda gera
uma boa carga de discussão. Mas não há que negar: precisamos conhecer todos os
lados da questão antes de emitirmos nossa própria opinião. E Chester Brown nos
faz esse favor: apresentar o seu lado da questão. O resto fica por nossa conta.
PAGANDO
POR SEXO faz com que repensemos nossos valores. Vivemos em uma época de
transformação de valores, mas há a necessidade de se manter o melhor desses
valores, não deixar que o lado pior impere – já basta o que vemos diariamente nos
noticiários.
Apesar
do ritmo lento e melancólico da história, vale a leitura. Mas não é obra
recomendada a menores, já vou avisando.
Obrigado
pela dica de leitura, Nights.
SOMENTE COM CAMISINHA - O RETORNO
Para
encerrar, já que tocamos no assunto sexo, vamos falar do uso de camisinha, este
acessório fundamental para prevenir doenças hor-ro-ro-sas. Em tempos de
Carnaval, não dá pra esquecer pelo menos uma junto aos adereços de folião.
Faz
tempo que não publico cartuns da minha série Somente com Camisinha, que eu produzi por volta de 2006. Eis aqui
então dois, dos mais polêmicos da série, porém inéditos até agora. Um deles, baseados numa piadinha bagacêra que ouvi uma vez no rádio; o outro, na ideia de um amigo.
Quando
penso nesta série, penso no meu amigo Bício (Fabrício Réquia Parzianello),
colega meu do Núcleo de Quadrinhistas de Santa Maria, RS – Quadrinhos S. A., fã
deste meu trabalho, e esse amigo de quem falei. Ele até intermediou o aproveitamento de alguns cartuns
desta série em campanhas educativas – dos quais já falei certa vez. Bício até
mesmo escreveu alguns roteiros de piadas para esta série.
Aah...
O que será que ele anda fazendo?
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