segunda-feira, 31 de março de 2014

Livro: DINHEIRO DO CÉU

Olá.
Hoje, conforme anunciado, teremos a nossa “programação especial” para lembrar o Golpe Militar de 1964, que no dia 1º de abril de 2014 completa 50 anos. Há 50 anos, era implantada a Ditadura Militar no Brasil. Há 50 anos, começa o período mais funesto da trajetória do Brasil República, quando as liberdades foram legalmente suprimidas, viver era difícil para cerca de 80% da população e o que dava as maiores alegrias aos brasileiros era ver a seleção brasileira fazer bonito nos gramados. De 1964 a 1985, milhares de pessoas tinham um fim trágico, proporcionado por gente ligada ao governo militar, por discordar do governo.



Bom, não estou aqui para fazer reflexões pouco úteis sobre o período que, para o Brasil de hoje, só deu duas coisas úteis: a Usina de Itaipu e a Ponte Rio-Niterói. Quem estuda história já conhece, e não é um período assim tão distante. Tivemos algum trabalho para reaver o direito de escolher nossos representantes, de ter acesso a informações oficiais do governo e abolir a “pena de morte a prestação” (as tão conhecidas torturas) de opositores do governo. Em suma: foi muito sangue, suor e saliva derramados para recuperarmos o direito de falar mal do mau governo, e sem sermos punidos por isso.
Bfff. Vocês sabem do que estou falando. Vocês estão, sim, entendendo o que estou escrevendo. Eu sei que os leitores deste blog não são idiotas.
Hoje, na véspera do Dia do Golpe, vou falar de livro. Tem a ver com a data.
Em postagens recentes, falei sobre a vida e a obra do escritor Edmundo Donato, mais conhecido como Marcos Rey (1925 – 1999). A maior estrela da histórica série infanto-juvenil Vaga-Lume, da editora Ática, Marcos Rey deixou uma porção de romances adultos e infanto-juvenis. Sua maior criação é a série Léo e Seus Amigos, que, com quatro livros (OMistério do Cinco Estrelas, O Rapto do Garoto de Ouro, Um Cadáver Ouve Rádio e Um Rosto no Computador), consagrou o autor como um dos mestres do policial infanto-juvenil.
Mas, na obra infanto-juvenil de Marcos Rey, principalmente dentro da série Vaga-Lume, encontramos livros que fogem do gênero policial. É o caso do livro do qual vou falar hoje: DINHEIRO DO CÉU.
Publicado em 1985, DINHEIRO DO CÉU é um drama de ficção com toques autobiográficos – vários elementos da juventude de Marcos Rey estão presentes na trama de um jovem que precisa crescer e escolher um rumo na vida. A trama se passa nos anos 60 do século XX – daí o interesse da data. Entretanto, os dramas de Danilo “Dani” Marino, o personagem principal, não são diferentes dos jovens de hoje. São universais.
O romance é dividido em duas partes: O Sábado de Aleluia e O Saco de Liras. E é todo narrado em primeira pessoa por Dani. A capa e as ilustrações da edição da Série Vaga-Lume é de Marcus de Sant’Anna. O livro também foi relançado, no início do século XXI, pela Global Editora – assim como quase toda a obra infanto-juvenil de Marcos Rey. As ilustrações desta edição são de Orlando Pedroso.
Dani tem muito em comum com Marcos Rey: é descendente de italianos, viveu no bairro da Bela Vista, em São Paulo, tradicional reduto dos descendentes de italianos, e é filho de tipógrafo.
Dani vivia em uma casa cheia: morava com o pai, a mãe, três irmãos mais velhos, o avô e um tio. Uma família humilde, mas que se vira como pode, como boa família italiana, e à base de muito trabalho. O pai, Atílio, como dito, trabalha como tipógrafo, e tem como ajudante o prestativo Mandrake; a mãe, Romilda, é dona de casa, tradicional mamma italiana; dos três irmãos, o mais velho, Roberto, não mora na casa, está sempre bem-vestido, de terno e gravata, mas de um modo extravagante, e se sustenta com negócios misteriosos que só serão revelados no decorrer da trama – e ai de quem chama-lo de cafona; o outro irmão, Fúlvio, sonha em fazer a faculdade de medicina e é um sujeito inteligente e responsável; e a irmã, Teresa, sonha em ter um bom casamento. Dani é o caçula da família, a “rapa da panela”, o que não tem muita voz ativa. O tio, Salvador, também conhecido como “comendador”, que mora de favor em um quartinho dos fundos da casa, é um amigo para todas as horas – tira dinheiro de pequenos bicos, simpático e está sempre disponível para ajudar Dani.
Quanto ao avô, Francesco, bem, a trama começa quando ele desaparece. Ele decide fazer uma viagem à Itália, para a região do Chiaromonte, sem avisar a família – o único a quem ele conta o segredo é Dani, que acorda no meio da noite para revelar seus planos. E o garoto o faz ao meio-dia do dia seguinte, causando grande alvoroço na família. Para empreender tal viagem, Francesco penhora os preciosos castiçais da família, sem avisar. E essa viagem para a Itália tem por objetivo buscar “um saco de liras” – uma herança da família Marino.
A notícia da busca por essa herança alimenta os sonhos da família de uma vida melhor – principalmente o de Fúlvio entrar para a faculdade e o de Teresa arranjar um bom partido. Entretanto, não se sabe quando ele vai voltar, o que já deixa os membros da família apreensivos. Enquanto esperam o retorno do nono, a família prossegue em sua vida. Dani, com seus próprios problemas. E a trama começa em março de 1964, poucos dias antes da implantação do Regime Militar. Entretanto, o evento histórico tem pouca influência na trama, ou mesmo na vida de Dani. Há trechos onde se discute a situação política do período – salvador, por exemplo, é o que aguarda, com mais entusiasmo, os resultados das Reformas de Base anunciadas pelo presidente de então, João Goulart, em março daquele ano. Importante mesmo é o elemento cultural da época, com a popularização, no Brasil, do rock e da minissaia (do tempo em que rock se escrevia em itálico). Os militares, no primeiro ano do regime, ainda não estavam mostrando seu lado “mau”: eles conseguiram convencer a população de que estavam “salvando” o Brasil do “perigo vermelho”, a ameaça de implantação de um regime comunista baseado no modelo da União Soviética, o que possivelmente João Goulart estava tentando fazer. Segundo os militares. Só depois é que a parte intelectualizada da população percebeu o embuste, enquanto a parte menos letrada, devido à censura à imprensa, não sabia de nada. O governo conseguiu convencer essa parcela, por cerca de mais ou menos quinze anos, que tudo ia bem.
Voltemos a Dani. No momento em que a trama começa, Dani está apenas estudando, mas já se encaminha para entrar no mercado de trabalho. Está de namoro com Mafalda, filha de uma família rica, que desaprova o namoro da garota com um rapaz “pobre”. Mesmo assim, Dani vai visitar Mafalda na casa dela (e a notícia da busca pela herança dá esperanças de um possível futuro ano namoro), e os dois combinam de ir a uma festa a fantasia a se realizar em um Sábado de Aleluia. O Tio Salvador consegue até arranjar uma fantasia de Conde Drácula para o sobrinho, e Mafalda faria par como Senhora Drácula. Porém, no dia combinado da festa, quando Dani vai busca-la, acaba recebendo uma desagradável notícia: Mafalda estava noiva de um rapaz mais abonado. E é assim, desiludido, que Dani entra na segunda parte da trama.
Depois de algum tempo, a única notícia que a família recebe do velho Francesco é um cartão postal com poucas palavras escritas. E a expectativa pelo retorno é grande. Tanto que Teresa consegue, depois de muita espera, um noivo, Farid, um turco que, supostamente, vem de família rica, fabricantes de tecidos do bairro do ABC – mas que, depois, revela-se não ser o que dizia ser.
Dani não se dá bem nos empregos que consegue arranjar, até que o pai resolve emprega-lo, sem salário, na tipografia. E ainda consegue um “rolo” com a bonitona Antonela, uma garota mais velha, que ajuda a mãe a fazer petit-fours (petiscos para festas) e parece muito interessada em Dani. Os dois, involuntariamente, assistem à “Revolução” de 64 nas ruas. O problema é que esse “rolo” coloca Dani na mira do truculento Bruno, um “paquera” de Antonela – embora ela negue. Mais: o pai de Dani, ressabiado, procura conhecer a vida misteriosa de Roberto. O filho mais velho, que odeia a pobreza, vive um padrão de vida de pessoa rica, e de forma bastante misteriosa – não a base de trabalho. Esse padrão de vida só vem à tona, mesmo, após um episódio de agressão e quebradeira em uma boate em que o “cafona” Roberto se envolve – e consegue pagar os prejuízos, à custa dos bens que adquiriu. Antes dessa revelação, Roberto aparece esporadicamente na trama, trajando seus ternos espalhafatosos, dirigindo carrões e dando conselhos a Dani sobre sorte e azar.
Emoções e surpresas aguardam o leitor e os personagens até o aguardado retorno de Don Francesco, com o saco de liras – ou não. E, ao mesmo tempo, Dani vai presenciando, aos poucos, os familiares se afastarem. Mas não esperem um final “feliz” para Dani. Podemos dizer que a vida de Dani não termina ao fim do romance.
Não é leitura para qualquer um, que gosta mais das tramas policiais de Marcos Rey. E o fato histórico a que se refere tem pouca influência na trama. Ora, o Regime Militar não envolveu toda a sociedade brasileira – havia uma parcela que, apesar do período “negro”, tinha interesse apenas em seguir a vida – e conseguia viver, em padrões parecidos com os de hoje: trabalho, contas a pagar, pequenos sonhos de consumo realizados a duras penas... Ainda assim, é uma boa opção para quem quer conhecer uma época que já se foi ou para fugir da “mesmice”. Vale a procurada nas bibliotecas e livrarias.
O livro que vou resenhar na próxima postagem, este sim tem mais a ver com o contexto histórico do Regime Militar. Digo, seus personagens foram diretamente afetados pelos generais. Aguardem.
Para encerrar, um cartunzinho sobre o Regime Militar. Digo, usando um elemento icônico do Regime Militar: a censura à imprensa. E, bem, quem disse que as pessoas que mais sofreram com a Ditadura Militar foram só as que foram torturadas pelos “esbirros” do Regime? E o fato referido no cartum aconteceu mesmo. Tudo bem, mexi em um vespeiro, ironizando um momento tão sério. Mas perder a piada? Pra quê?

Até mais!

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