Olá.
Hoje,
1º de abril de 2014, Dia da Mentira, é também o Dia do Golpe. Hoje, o Golpe
Militar, que instaurou a Ditadura Militar Brasileira que durou de 1964 a 1985,
completa 50 anos. Nesse dia, as forças ligadas às Forças Armadas e à oposição
ao governo de João Goulart depuseram o presidente e conseguiram convencer a
população que estavam salvando o país de um “perigo vermelho”, um suposto
complô dos comunistas para tomar o poder.
Só
mais tarde os brasileiros conseguiram, apesar da censura imposta aos meios de
comunicação, perceber o embuste. O crescimento econômico do Brasil foi grande,
mas a grande parcela da população não pôde aproveitar – o ministro da Fazenda
Delfim Netto disse que “era preciso fazer o bolo crescer para depois dividi-lo”.
Mas o “bolo” murchou, por conta da inflação galopante, antes da divisão.
Resultado: agravamento do abismo social entre ricos e pobres. E, enquanto isso,
o governo gastava com obras faraônicas, propaganda do país... era o tempo do
“Brasil, ame-o ou deixe-o”. Quem se atrevesse a criticar o governo, ou lutar
contra o estado de coisas, corria o risco de ser preso, torturado e morto. A
menos que desse um jeito de fugir do país.
Essa
história todo mundo já conhece, quem estuda História sabe, quem não ignora as
aulas de História sabe do que estou falando. Pior que ainda hoje me deparo com
gente que defende a Ditadura Militar, sem conhecer a verdadeira história. Dizem que "se não fossem os militares, o Brasil teria se tornado Cuba". Será que era isso mesmo que Goulart queria fazer? Não que eu apoie a ditadura cubana de Fidel Castro (sei que, apesar dos avanços sociais, a situação lá não é das melhores), mas... Dizem ainda que a Ditadura era menos corrupta que o Brasil de hoje. Será? Mas será porque
as informações sobre casos de corrupção no Governo Militar... não vinham à tona
por causa da censura à imprensa?
Bem.
Eu que sou professor de História, posso afirmar categoricamente que a Ditadura
Militar só legou ao Brasil de hoje duas coisas úteis: a Usina de Itaipu e a
Ponte Rio-Niterói. Se houver outra coisa útil que o Regime Militar legou, podem
me dizer nos comentários – e, de preferência, com provas convincentes.
Bão,
chega de ficar divagando sobre aquilo que todo brasileiro bem-informado sabe.
Hoje vou é falar de livro. Um romance infanto-juvenil que tem muito a ver com
os eventos “homenageados” neste dia.
Hoje
vou falar de MENINOS SEM PÁTRIA, de Luiz Puntel.
O
AUTOR
Antes
vou falar um pouco do autor.
Luiz
Puntel nasceu em Guaxupé, Minas Gerais, em 1949. Passou a infância em São José
do Rio Preto, São Paulo, e hoje reside em Ribeirão Preto, SP. Escritor premiado
e reconhecido também por suas atividades como professor (ele é formado em
Letras), Puntel atualmente dirige, na cidade onde vive, a Oficina Literária Puntel,
onde ministra aulas de Português, Literatura e Comunicação para alunos de todas
as idades. Conheçam o trabalho dele pelo site www.puntel.com.br.
Seu
primeiro livro foi publicado em 1978 – Não
Aguento Mais Esse Regime, coletânea de contos, pela editora Ática. Puntel
foi, e ainda é, um dos escritores que mais publicou títulos na histórica série
Vaga-Lume, da Editora Ática. Por essa série, ele publicou: Deus me Livre!, Açúcar Amargo, Um Leão em Família, Meninos sem Pátria,
Tráfico de Anjos, Missão no Oriente e O
Grito do Hip Hop. Fora da Editora Ática, Puntel ainda publicou os livros Carrasco de Goleiros e Um Soco no Estômago, além de livros
didáticos e contos inclusos em coletâneas.
A
obra de Puntel é caracterizada pela linguagem simples, acessível aos leitores
jovens, e por escrever preferencialmente sobre temas da atualidade, com crítica
social e um pouco de humor.
O
LIVRO
MENINOS
SEM PÁTRIA, publicado pela primeira vez em 1988, ainda faz parte do catálogo da
Série Vaga-Lume – e com capa e ilustrações de Jayme Leão, falecido em março
deste ano. Leão ficou conhecido como o ilustrador “oficial” da série de livros Léo e Seus Amigos, de Marcos Rey, pela
mesma Série Vaga-Lume.
MENINOS
SEM PÁTRIA tem por pano de fundo o período da Ditadura Militar Brasileira, e
trata do drama dos filhos dos exilados pelo Regime – ou seja, opositores do
Governo Militar que preferiram “deixar” o Brasil a “amá-lo”. Por temerem
represálias do Governo Militar e de forças ligadas a ele, muita gente precisou
fugir do Brasil, indo se refugiar em outros países (os casos mais famosos são
de Luís Carlos Prestes, Fernando Gabeira, Chico Buarque e Leonel Brizola),
alguns conseguindo levar a família. Os filhos dos exilados nascidos no Brasil
passaram a viver sob culturas diferentes das de seus países de origem, e,
quando afinal puderam retornar à sua pátria, a partir de 1979, ano da aprovação
da Lei da Anistia, vieram com sensação de estranhamento – desaprenderam a falar
português do Brasil e praticamente desconheciam aspectos da Brasil. Claro que
não é um drama exclusivo do Brasil, muitos países que viveram sob Ditaduras ou
guerras tiveram drama parecido. Mas, neste caso, estamos falando dos
brasileiros.
Com
algumas liberdades ficcionais, Puntel oferece um relato próximo do verídico da
vivência de uma família que precisou fugir do Brasil e correr meio mundo em
busca de tranquilidade durante os conturbados anos 60 e 70. O personagem
principal do livro, Marcão, que narra sua trajetória em primeira pessoa, poderia
ter sido uma pessoa real, tal a habilidade como Puntel narra a história. E, de
brinde, o leitor ainda ganha, de forma subliminar, uma aulinha de francês.
Na
introdução, Puntel conta que a inspiração para escrever o romance veio das
aulas de português que ministrou em um colégio de Ribeirão Preto, quando
conheceu um aluno que veio refugiado de Angola. O drama desse aluno, longe de
seu país e de sua cultura, e tendo de viver sob a cultura de outros, foi a
inspiração, bem como relatos de outras crianças que recém retornavam ao Brasil,
vindas de Portugal França, Argélia, Inglaterra... E que vinham falando outras
línguas.
Très bien. O
romance.
Marcos,
ou Marcão, era filho de Zé Maria, um jornalista crítico do governo militar, e
de Terezinha, a Tererê, uma dona-de-casa. Ele tinha um irmão, Ricardo, ou Rico,
e ganhou mais dois irmãos no decorrer da trama, Pablo e Nicole. Mas vamos por
partes.
A
história começa por volta de 1970, durante o governo do presidente Emílio
Médici, o mais repressor do Regime Militar. A duras penas, Zé Maria, que morava
com a família em Canaviápolis, dirigia um jornal de oposição, O Binóculo, que
no início da trama é depredado por governistas, por conta de algumas notícias
que não podiam ser publicadas. Marcão contava dez anos na ocasião, mas já
entendia muita coisa das conversas dos pais. Tererê, a maior apoiadora da
atividade do marido, está grávida novamente, e vive sendo tratada pelo marido
como se estivesse doente – algo que a própria reclama bastante. Rico, o irmão
mais novo de Marcão, ainda era um menino ingênuo e brincalhão, mas no decorrer
da trama também acaba amadurecendo, ao seu modo. Ah: vale dizer que a família
vive numa perfeita harmonia, apesar das intempéries – o pai, sempre disposto a
dar conselhos aos filhos, a mãe superprotetora e os irmãos unidos. Talvez o
grande problema de Marcão foi ter tido de amadurecer cedo demais.
Primeiro,
foi a depredação do jornal do pai. Depois, uma série de telefonemas
intimidadores, dirigidos ao pai, que Marcos atende. A família sob vigilância.
Enquanto isso, Marcos tentava prosseguir com as brincadeiras infantis, as
partidas de futebol na rua e as de botão com Rico. E o síndico do prédio onde a
família morava, amigo da família, costumava passar, em código, sinais que a
família corria riscos. Algo comum tanto para governistas quanto para
opositores.
Até
que, no momento em que a família percebe que a casa está cercada, Zé Maria toma
uma atitude desesperada: sequestra um entregador de gás que estava visitando o
prédio e foge, disfarçado como o tal entregador, em um caminhão de gás, antes
de uma batida policial.
A
família só recebe notícias de Zé Maria dias depois, quando uma freira
disfarçada de faxineira leva Tererê, Marcão e Rico para se refugiarem em um
convento. Depois de alguns dias, a família pega um ônibus para Corumbá, Mato
Grosso, depois para a Bolívia, e de lá, de avião, vão encontrar Zé Maria em
Santiago, no Chile – então vivendo a experiência socialista do presidente
Salvador Allende. Começava aí a vida de Marcão como exilado. A sua maior dor
foi ter saído do Brasil sem poder se despedir de Ana Rosa, uma menina de quem
gostava, e estava quase namorando.
No
Chile, Zé Maria trabalha como jornalista, e nasce o terceiro filho da família,
Pablo. Entretanto, as coisas começam a ficar pretas: em 1973, acontece o golpe
militar no Chile, quando começa o sanguinário governo do general Augusto
Pinochet. E a família, ligada à oposição do novo Regime Militar, é mais uma vez
visada. Zé Maria some de novo, e a família recebe a desagradável visita dos
carabineros do governo chileno em sua casa.
Em
um episódio emocionante, a família consegue se refugiar na embaixada da França
– Marcão quase leva um tiro na fuga em direção ao prédio onde ficariam seguros
da perseguição do governo. E lá, encontram Zé Maria novamente. Mas o episódio
deixa Marcão traumatizado, com fobia de policiais fardados.
Foi
um sofrimento, o refúgio da família, com várias outras pessoas, na embaixada
francesa, até a liberação dos vistos de saída. Mas, assim que os vistos saem, a
família está em fuga novamente: vão para a França, com uma breve escala no
Brasil. E, na França, finalmente a família tem um pouco de paz. Ou quase.
Poucos
dias após a chegada, a família vai assistir a um desfile de 14 de julho – o
feriado nacional francês, e já começa o drama da adaptação ao idioma e à
cultura francesas. Não é algo novo, visto que passaram pela mesma experiência
no Chile, mas é mais difícil se adaptar ao francês que ao espanhol. E nisso o
leitor ganha, porque os diálogos entre os personagens misturam frases em
francês e português, o que já garante a aulinha de francês.
A
família se estabelece num bairro do subúrbio de Paris. Zé Maria consegue um
emprego de repórter frila (freelancer) no jornal Le Monde, onde continua a escrever notícias críticas ao governo
brasileiro. E Marcão e Rico entram para um colégio francês – felizmente, eles
não são os únicos brasileiros do colégio. É no colégio que Marcão conhece seu
melhor amigo, Pierre, um francesinho sardento a princípio brincalhão, mas que
mais tarde se torna um grande parceiro durante o exílio.
Mais
ainda: Marcão conhece o amor. Uma francesinha, chamada Claire, que se apaixona
pelo “brèsilien”, como Marcão fica conhecido. Filha de uma costureira e de um
soldado desaparecido da Legião Estrangeira na Argélia, Claire chega a por em
cheque o relacionamento com Marcão, mas sempre demonstrando estar apaixonada.
Na
França, nasce a irmã de Marcão, Nicole. E, mais uma vez, o pai acaba sendo
perseguido por agentes disfarçados na França, por publicar algumas “críticas”
ao governo Médici no Le Monde. Mas o pior, felizmente, não acontece. Por pouco,
a família não precisa fugir outra vez.
Foi
no momento em que Nicole nasceu que Claire coloca em cheque sua relação com
“Marc”, em uma carta que o garoto interpreta mal: acaba acreditando que o
namoro não pode prosperar pelo fato de Marcão ser brasileiro, um abelhudo, um
intruso na França, o que o deixa desiludido, a ponto de tomar seu primeiro
porre. Porém, graças à compreensão de Pierre e do pai, Marcão consegue se
acertar com Claire, e permitir que o namoro fosse até onde pudesse ir.
O
momento mais emocionante do livro acontece quando, instado pelo professor de
Geografia, Marcão, Rico e os outros colegas brasileiros do Colégio pesquisam
sobre o Brasil – um país que, naquele momento, era desconhecido dos próprios. E
descobrem um país que até mesmo os próprios brasileiros desconheciam.
Mas
o que acontecerá a Marcão e sua família no momento em que chegar a notícia da
Anistia e a oportunidade de voltar para o Brasil? Marcão será capaz de deixar,
sem remorsos, a vida que construiu no exterior?
Puntel,
ainda por cima, acrescenta algumas sutis referências a fatos acontecidos
durante o Regime Militar Brasileiro, como os atos institucionais, a propaganda
governamental, o caso Vladimir Herzog e o uso político da Copa do Mundo de 1970, o tricampeonato
brasileiro. Logo, é um livro que vale a pena ler, quem quiser conhecer o
período da Ditadura Militar. A história é emocionante, tem boas doses de humor,
e você vai se surpreender ao ver uma família em perfeita harmonia apesar das
intempéries – quase uma “família de comercial de margarina” durante um regime
totalitário.
Pesa
o fato de Puntel ter vivido no Brasil na época da Ditadura Militar – mas ele
nunca precisou se exilar, felizmente – logo isso lhe dá cacife suficiente para
escrever sobre a época.
Procurem
na biblioteca e nas livrarias. Já é um bom pretexto para fazer uma visitinha à
biblioteca de sua cidade. E para conhecer o período dos “anos de chumbo”
através da ficção.
Para
encerrar, mais dois cartuns referentes ao tema desenvolvido. O primeiro, já foi
publicado há algum tempo atrás, mas não faz mal publicar de novo, agora que o
tema está na pauta. O pesquisador Rafael Grasel conseguiu revelações – ou seria
desculpas esfarrapadas? – inéditas sobre as torturas ocorridas na Ditadura
Militar, antes da Comissão da Verdade. E se for verdade as teses sobre suicídio
de presos políticos?
O
segundo é mais recente, e corrobora o que disse parágrafos acima – vocês acham
mesmo que a Ditadura Militar não foi corrupta?
Soube
que, recentemente, a Arena, o partido “a favor” do Governo Militar, foi
refundado agora, no século XXI. Para quem não sabe, durante o Regime Militar,
só existiam dois partidos políticos, a Aliança Renovadora Nacional, ou Arena,
de situação, e o Movimento Democrático Brasileiro, ou MDB, de oposição. Esses dois
partidos acabaram fragmentados após o retorno do pluripartidarismo nos anos 80,
período da redemocratização.
Não
me admira que, com tanta gente defendendo o Regime Militar, alguém resolva
refundar o CCC, Comando de Caça aos Comunistas, o terrível grupo paramilitar
que ajudava na perseguição aos opositores do regime.
Nasci
em 1984, um ano antes do fim “oficial” do Regime Militar. Que bom eu ter
crescido durante a retomada da democracia no Brasil. Alguém já disse: “A pior
das democracias é melhor que a melhor das ditaduras”. Por pior que seja este
governo, eu não troco por uma nova ditadura, não mesmo. Seja de direita, seja
de esquerda. Só se me garantirem que a liberdade de imprensa e de opinião não
será afetada.
Até
mais!
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